“A escravidão permanecerá por muito tempo como característica nacional do Brasil”. Foi o que apontou o jurista, diplomata e líder abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), em seu livro “Minhas Memórias”, de 1900. Passados mais de 135 anos da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil em 1888, esta característica ainda aparece sob variadas formas na sociedade brasileira. Sejam elas de maneira velada, em meio a reminiscências de práticas discriminatórias, ou mesmo em situações explícitas do chamado “trabalho análogo à escravidão”, ocorrência que registrou, no ano passado, 3.190 trabalhadores resgatados em operações de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
É o maior número de resgates dos últimos 15 anos, superando o recorde de 2009, quando 3.765 pessoas foram encontradas nessa condição. E segundo informações do próprio MTE, esse resultado foi obtido mesmo com o menor número de auditores fiscais do trabalho desde a criação da carreira, em 1994: são menos de 2 mil servidores da ativa no cargo. Uma realidade que, para muitos especialistas, evidencia a falta de investimentos em políticas públicas de enfrentamento ao problema.
“Embora as fiscalizações nunca tenham deixado de existir, é fato que deixaram, durante um determinado período, de ser prioridade orçamentária. Uma ação fiscal desse tipo envolve muitos sujeitos, Polícia Federal, toda uma estrutura que implica incremento orçamentário. Quando não é a prioridade de quem decide sobre orçamento, natural que os dados pareçam reduzidos. A retomada, nesse sentido, gera um salto que é mais aparente do que real. Mas, não tenho dúvida, a situação ainda é muito grave no Brasil”, observa o professor Ricardo das Mercês Carneiro, do curso de Graduação em Direito e da Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGD) da Universidade Tiradentes (Unit).
Ricardo, que também é procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), define o trabalho escravo como uma questão comercial decorrente da pobreza de uns e do sentimento de maximização dos lucros por outros. “Por mais terrível que pareça, as pessoas exploram outras nessa condição porque tal prática maximiza o lucro. É um processo de desumanização do trabalho, já que o labor humano, para quem reduz outra pessoa à condição de escravo, é apenas mais um fator de produção que, como os demais, deve ser sempre reduzido, o mais próximo de zero”, afirma ele.
Em muitos dos casos de trabalho análogo à escravidão, um crime cujas situações estão previstas pelos artigos 149 e 207 do Código Penal, pessoas em situação de extrema pobreza e de locais mais distantes são atraídas por promessas de grandes oportunidades de trabalho, mas acabam submetidas a trabalhos com consições degradantes, longas jornadas e praticamente nenhuma remuneração.
“Quando os trabalhadores ‘despertam’, já estão em locais ermos, sendo ameaçados e devendo dinheiro às pessoas que os contrataram, já que tudo que é consumido no caminho para o local de trabalho é cobrado de forma abusiva. É aquilo que a lei chama de servidão por dívida. O trabalhador trabalha para quitar uma dívida impagável, criada a partir dos artifícios da política de armazém, segundo a qual todos os produtos que a empresa vende ao obreiro são superfaturados e ele não tem outra opção de compra (até em razão dos locais distantes em que os trabalhos são realizados, especialmente no setor rural)”, explica o professor.
Dentro de casa
A maior parte destes resgates aconteceram em propriedades rurais e em fábricas improvisadas. Mas uma das situações que mais têm chamado a atenção de ativistas e autoridades é a descoberta de situações de trabalho análogo à escravidão em ambientes domésticos, nos quais mulheres moram em casas de família e trabalham em jornadas interminaveis, como fossem “as empregadas da casa”. São casos como o de uma mulher de 84 anos que foi resgatada em 2022, após passar 72 anos como trabalhadora doméstica na casa de uma família do Rio de Janeiro. O Ministério Público Federal (MPF) denunciou os responsáveis, mãe e filho, por quatro crimes relacionados a trabalho escravo e apropriação de recursos.
Ricardo Carneiro explica que o ambiente doméstico é aquele em que a notícia da ilicitude chega com mais dificuldade, e cuja publicidade ainda está abaixo da situação real, mesmo com o crescimento das denúncias. Mas outras questões mais delicadas aparecem como causas dessa dificuldade.
“Algumas dessas pessoas exploradas desenvolvem sentimento de gratidão pela oportunidade de ter trabalho. Trabalham em troca de mínimas condições para sobrevivência, mas, em muitos casos, acreditam que “fazem parte da família” do explorador e, por isso, não denunciam. Por outro lado, em virtude da inviolabilidade do domicílio, consagrado na Constituição Federal, sem denúncia de que a conduta criminosa está sendo efetuada (para a caracterização do flagrante delito), a fiscalização não tem acesso ao que ocorre no ambiente de uma residência.”, detalhou.
Reações necessárias
A retomada das ações e políticas públicas de erradicação do trabalho escravo contribui para o aumento dos casos. No entanto, o professor defende a imposição de multas e indenizações mais pesadas para os exploradores, incluindo a regulamentação de um artigo da Constituição que prevê a expropriação de imóveis urbanos ou rurais em que for constatada a exploração de trabalho em condições análogas às de escravidão.
“Vivemos uma época de tamanha repulsa a esta prática nociva que seria de bom tom levantarmos junto ao Congresso Nacional a necessidade de uma lei que regulamente esse processo para viabilizar a aplicação desse tipo de punição aos criminosos”, diz Ricardo, que ainda sugere uma reação ainda mais forte da sociedade civil, através do boicote a marcas, produtos e empresas que se beneficiam dessa prática.
com informações da Agência Brasil
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