Em um país que tem testemunhado avanços sociais e econômicos significativos, a persistência do analfabetismo revela uma realidade discrepante, evidenciando a disparidade racial que permeia a sociedade brasileira. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2023, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que o índice de analfabetismo entre a população negra ainda é o dobro do registrado entre brancos.
De acordo com a professora do curso de Pedagogia da Universidade Tiradentes (Unit), Márcia Machado, um dos principais fatores que contribuem para manter esse índice alto são as diversas desigualdades econômicas e sociais. “As desigualdades são históricas e estruturais, atingem a todos, mas especialmente a população negra cuja maioria vive na pobreza em nosso país, ainda consequências da falta de políticas de proteção e amparo aos negros desde séculos passados. Além disso, temos as desigualdades regionais que também mantêm relação com as questões econômicas e sociais”, explica.
Esse problema social, enraizado em um histórico de desigualdades estruturais desde a época da escravidão, se concentra principalmente no Nordeste, região com as taxas mais alarmantes do país de 11,2%, bem acima da média nacional de 5,2%. Em seguida, o Norte apresenta 6,4%, enquanto o Sul, Sudeste e Centro-Oeste registram taxas mais baixas de 2,8%, 2,9% e 3,7%, respectivamente, de acordo com a PNAD Educação 2023.
“As regiões que detêm maiores investimentos produtivos vão ofertar mais postos de trabalho e por isso a busca por formação se intensifica. O inverso também é verdadeiro. Mesmo entendendo que a formação humana não deve ser dependente do mercado de trabalho, numa economia capitalista o crescimento produtivo impulsiona a busca das pessoas por conhecimento, e para isso é preciso um mínimo de escolarização. Embora saibamos que essas desigualdades têm origem histórica, o Brasil não tem conseguido, mesmo em momentos nos quais tem uma situação econômica positiva, avançar de forma significativa na redução delas”, exemplifica Márcia.
A correlação entre a taxa de analfabetismo e questões socioeconômicas se torna bastante clara. “Aqueles que podem dispor de recursos para proporcionar uma educação de qualidade para seus filhos ou para si próprio, vão obtê-la. Aqueles que não conseguem frequentar o ensino público ou privado de excelência, terão uma educação mínima ou nem isso. E aqui não me refiro só a escola, mas também a inserção em outros espaços onde se aprende, constrói conhecimento e se tem acesso à cultura”, elenca.
Analfabetismo e seus níveis
Para o IBGE uma pessoa alfabetizada é aquela que consegue escrever um bilhete simples, entretanto, para os educadores, o processo de alfabetização vai muito além disso. O que gera uma preocupação com o enorme quantitativo de analfabetos funcionais no país. Atualmente, de acordo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) existem cinco níveis para o alfabetismo e, percebe-se que as pessoas de 15 a 64 anos que estão distribuídas nesses níveis não conseguem avançar para o nível proficiente, ou seja, não conseguem atingir a funcionalidade alfabética de elaborar textos de maior complexidade.
“Esses dados são de 2018, ainda é preciso conhecer como está essa realidade após a pandemia e toda a flexibilização que precisou existir no ensino em 2020 e 2021, inclusive com aprovação automática na educação básica. O que não poderia ser diferente. Esse contingente de pessoas está nos diversos espaços da sociedade, boa parte estão em subempregos, batalhando o dia todo para ganhar o pão. São pessoas que precisam priorizar a sobrevivência, muitas vezes desestimuladas, o que também se torna um empecilho para acessarem ou retornarem à escola”, ressalta a professora.
Um resultado apontado pela PNAD Educação 2023 foi que embora a análise por cor/raça das pessoas que concluíram pelo menos uma etapa da educação básica tenha mostrado que 48,3% dos pretos ou pardos estão nessa situação, resultado menor que o das pessoas brancas, 61,8%, a proporção de pretos ou pardos que concluíram pelo menos uma etapa aumentou 10,1% desde 2016, enquanto em relação aos brancos o aumento foi de 6%. “Leva-nos a pensar que se continuarmos a manter elevado esse percentual, talvez tenhamos mais pessoas pretas e pardas concluindo a educação básica. No entanto, lembro que não se deve descuidar da alfabetização e do letramento, processos imprescindíveis na escolarização dos sujeitos”, complementa.
O papel das políticas públicas
O combate ao analfabetismo exige um esforço conjunto de governos, entidades da sociedade civil e da comunidade em geral. Políticas públicas direcionadas, investimentos em educação de qualidade e o uso estratégico da tecnologia são ferramentas essenciais para superar esse desafio. Márcia explica o que já foi feito até agora para reverter essa situação ao longo dos últimos 20 anos.
“Foi criado em 2003 o Programa Brasil Alfabetizado, durante o primeiro governo Lula, que tinha o objetivo de alfabetizar jovens e adultos de 15 anos ou mais que não puderam estudar na idade apropriada, não havia distinção de cor. O programa funcionou até 2016, mas paralisou com a situação política da época. Em 2022 o governo Bolsonaro reativou o programa, implantando um projeto piloto no estado de Alagoas, selecionado por ser a Unidade da Federação que apresentou a menor taxa de alfabetização da população de 15 anos ou mais de idade aferida no Censo 2010 e na PNAD Contínua. Resta acompanhar como será desenvolvido essa nova fase do programa”, conta a professora.
Além do Programa Brasil Alfabetizado (PBA), as redes de ensino têm ofertado a Educação de Jovens e Adultos (EJA), desde a alfabetização até o ensino médio, para aqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos, nestes inclusos as pessoas negras. “Como ações afirmativas temos as cotas nas universidades, sendo a Universidade de Brasília a primeira instituição a implementá-las em 2009, mas compreende-se que esse jovem que chega ao Enem não é mais analfabeto”, enumera Márcia.
Segundo Márcia, hoje no país existem muitas ações pontuais de entidades sem fins lucrativos, movimentos sociais e até mesmo projetos sociais desenvolvidos por grandes empresas que trabalham com a população negra no Brasil, mas seria preciso um estudo mais aprofundado de quais ações contribuem, especificamente, para eliminar o analfabetismo junto a essa população. Além disso, a tecnologia pode ser uma aliada no combate ao analfabetismo, especialmente em comunidades remotas ou carentes.
“O uso de tecnologia favorece o acesso daqueles que estão em áreas remotas e com dificuldade de chegar aos espaços escolares, encurtando as distâncias para acesso ao conhecimento, mas é preciso políticas sérias que façam chegar os recursos materiais a esse público e que se forme educadores a fim de estarem preparados para o uso das tecnologias. Muitas vezes ainda é preciso uma infraestrutura mínima, a exemplo de conexão com a internet, não adianta políticas de distribuição de equipamentos, como computadores ou notebooks, se o professor e o aluno não puderem ter uma boa internet para a educação à distância”, equipara a professora.
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