Em meio às festas juninas, quando o cheiro de pólvora e o som dos fogos tomam conta do ar, um dos destaques mais esperados em Estância (SE) chama atenção pelo ineditismo e tradição: o Barco de Fogo. Patrimônio cultural imaterial do município, essa criação pirotécnica feita de madeira, papelão, papel alumínio e bandeirolas percorre cabos de aço impulsionada por rojões e espadas, criando um espetáculo visual único. Para quem visita a cidade nesta época do ano, é a chance de conhecer de perto uma manifestação que faz parte da história e da cultura da cidade.
Essa tradição nasceu no final da década de 1930, quando o fogueteiro Chico Surdo decidiu criar um barco que navegasse fora das águas. Assim surgiu o primeiro modelo, feito de papelão e impulsionado por pólvora. De lá para cá, a arte evoluiu, ganhou novos fogueteiros e se transformou em símbolo cultural, tanto que Estância é, com orgulho, conhecida como a Capital Brasileira do Barco de Fogo.
A importância da manifestação é tamanha que, desde 2011, o dia 11 de junho é oficialmente o Dia Estadual do Barco de Fogo, de acordo com a Lei Nº. 7.301/2011. Ou seja, é mais do que uma data no calendário; é um reconhecimento da singularidade. Paulo Ricardo, Secretário da Cultura de Estância, enfatiza a importância dessa celebração para a cultura local e estadual. “Uma cultura única e encantadora, o barco de fogo encanta a todos que o veem. A importância de um dia dedicado ao barco de fogo traz consigo o fortalecimento da tradição e o auxílio na perpetuação da cultura do barco de fogo”, afirma Ricardo.
Preparação e impacto social
A celebração do Dia do Barco de Fogo envolve uma preparação meticulosa e um esforço conjunto. A Prefeitura, por meio da Secretaria de Cultura, trabalha em parceria com a Associação Os Marujos de Chico Surdo para promover um cortejo vibrante. “Promovemos um cortejo com diversas batucadas conduzindo a população a ir ver a soltura dos barcos de fogo na Praça Barão do Rio Branco”, explica Paulo Ricardo. Esse cortejo não só celebra a tradição, mas também reúne a comunidade.
Além do aspecto cultural, o Barco de Fogo gera um impacto social e turístico significativo para o município. Embora não haja dados precisos em valores, o secretário Paulo Ricardo observa o aquecimento da economia local. “A certeza é que vários turistas estão chegando para conhecer essa cultura que é nossa, sergipana e estanciana. E o retorno que estamos recebendo das redes hoteleiras e comércio local é que estão aquecidos e trabalhando muito”, relata. Essa movimentação impulsiona o turismo e o comércio, demonstrando o poder da cultura como motor econômico.
Identidade e Legado
O Barco de Fogo é um pilar fundamental na construção da identidade e do pertencimento do povo estanciano. “Um povo que reconhece a sua cultura tem um cuidado maior com ela e, ao perceber também que essa cultura tradicional do seu povo tem valor aos olhos de outros povos, ele passa a ter orgulho da cultura que é sua. Essa manifestação cultural é um elo entre gerações, reforçando o orgulho de ser estanciano”, reforça o secretário.
Para manter viva a tradição entre os jovens, a gestão atual tem implementado diversas ações. O município adquire os barcos diretamente dos fogueteiros, incentivando a produção. Além disso, a divulgação nas redes sociais e a criação de monumentos com o símbolo do barco de fogo em locais estratégicos da cidade buscam despertar o interesse das novas gerações. “Desperta o interesse dos jovens em querer saber mais sobre o barco, em querer aprender como faz e, como em muitos casos acontece, ter um parente fogueteiro que possa te ajudar com o conhecimento da fabricação, esse jovem pode ser um fogueteiro”, explica Ricardo, ressaltando a transmissão do conhecimento de geração para geração.
A voz da história
O Memorial da Cultura de Estância, sob a coordenação de Wilton, desempenha um papel fundamental na divulgação das potencialidades culturais. ” Através de Mostras temáticas, como a Mostra do Ciclo do Fogo que encanta alunos, turistas e pesquisadores. Trabalhamos com a Educação Patrimonial e com a ação Cultural Memorial na Escola. O Memorial também se dedica a apresentar a história do Ciclo do Fogo, da Preparação do Fogo, de como é feito essa rica tradição cultural”, explica Wilton.
Wilton também aborda os desafios na preservação dessa arte. “São tantos desafios, o primeiro é alguns seres humanos entender que essa Arte pirotécnica não é algo supérfluo, é uma tradição cultural que representa toda a nossa estancianidade”, desabafa. A visão do coordenador para o futuro é de crescimento. “Nossa ideia é crescer ainda mais o Memorial da Cultura Estanciana, para que os estancianos e os turistas, possam beber ainda mais desta rica tradição cultural”, completa.
O professor aposentado e estanciano Everaldo Marques de Sousa reforça a profunda conexão emocional com o Barco de Fogo. “O barco de fogo é muito mais do que um espetáculo pirotécnico ele é a alma da tradição junina de Estância”, descreve. Para ele, o barco não é apenas uma atração, mas um símbolo de identidade, memória e pertencimento. “Desde criança, acompanho a tradição com fascínio. O barulho das espadas de fogo estalando no ar, a luz vibrante refletindo no céu noturno, e a emoção do momento em que o barco desliza velozmente pelo arame, como se fosse impulsionado pela própria energia da festa”, relembra.
Everaldo explica a complexidade por trás de cada artefato. “Cada barco de fogo é fruto de mãos habilidosas, de pessoas que mantêm viva a arte de construir esses pequenos navios guiados pelo fogo e pela paixão de um povo”, detalha. Para o professor, o Barco de Fogo transcende o entretenimento. “O barco de fogo representa o orgulho da nossa gente e a força da cultura popular nordestina. Ele une gerações, resgata histórias e cria memórias. É a tradução do nosso espírito festeiro, da alegria que contagia e do compromisso em preservar nossas raízes. Enquanto houver São João em Estância, haverá barco de fogo navegando pelo céu, iluminando nossa tradição e reforçando nosso laço com essa terra que nos ensina a celebrar a vida com fé, festa e fogos”, infere.
Impacto nas gerações
A academia também reconhece e valoriza o Barco de Fogo como um patrimônio imaterial. Adriana Rocha, diretora do campus da Universidade Tiradentes (Unit) em Estância, destaca o envolvimento da instituição. “O Barco de Fogo é o nosso patrimônio imaterial, uma expressão cultural muito forte aqui na região. A Universidade Tiradentes sempre acolheu e valorizou as manifestações culturais que envolvem o barco de fogo”, pontua Adriana.
A Unit incorpora o símbolo em sua ornamentação, como na GincajUnit, e patrocina o grande cortejo conduzido pela Associação dos Marujos de Chico Surdo no Dia do Barco de Fogo. Essa parceria demonstra o compromisso da universidade em preservar e promover o patrimônio cultural local. O Barco de Fogo, portanto, é mais do que um espetáculo; é um elo que une o passado, o presente e o futuro de Estância, impulsionando sua economia, fortalecendo sua identidade e encantando a todos que têm a oportunidade de presenciar essa magia no céu junino.
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