ESTUDE NA UNIT
MENU



Acesso mais amplo a sites de apostas podem agravar o vício em jogos

Discussão foi levantada pela legalização do funcionamento dos sites de apostas esportivas; transtorno chamado de ludopatia já aumenta a demanda por grupos de ajuda e por serviços psiquiátricos da rede pública

às 18h20
O vício em jogo, também chamado de ludopatia, faz com que o paciente não consiga conter a vontade de fazer jogos e apostas (Dzmitry/Adobe Stock - gerado com IA)
O vício em jogo, também chamado de ludopatia, faz com que o paciente não consiga conter a vontade de fazer jogos e apostas (Dzmitry/Adobe Stock - gerado com IA)
Compartilhe:

Entre as décadas de 1970 e 1990, as propagandas de cigarros tomavam boa parte do mercado publicitário brasileiro, em todas as mídias, até serem totalmente proibidas no ano 2000, dentro das medidas do governo federal para combater o tabagismo. Mais de 20 anos depois, o espaço publicitário nos outdoors, páginas, sites e intervalos de rádio e TV passaram a ser ocupados pelos sites e empresas de apostas esportivas on-line, conhecidas como bets, cuja atividade passou a ser regulamentada pela Lei Federal 14.790/2023, também chamada de “Lei das Bets”, sancionada em dezembro do ano passado. 

A chegada das bets se somou a outra febre: a dos cassinos virtuais sediados no exterior, que podem ser acessados pelo celular e via internet, e que atraem muitas pessoas por causa da facilidade de jogar e das promessas de ganho fácil de dinheiro. Uma das “iscas” mais usadas nesse sentido é o “jogo do tigrinho”, que passou a ser bastante acessado principalmente por meio das redes sociais. O resultado é o aumento crescente do contingente de pacientes que procuram os serviços de psiquiatria, com sinais de transtornos e problemas relacionados à ludopatia, um transtorno de controle de impulsos no qual uma pessoa desenvolve o vício em jogos. 

Este problema, também conhecido como transtorno do jogo, está classificado no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). “É caracterizado por um comportamento persistente e recorrente de jogo que leva a prejuízos ou sofrimento significativos. Os critérios diagnósticos incluem a necessidade de apostar quantias crescentes para alcançar a excitação desejada, tentativas fracassadas de parar ou reduzir o jogo, e comprometimento das atividades pessoais, sociais e profissionais devido ao jogo”, define Augusto César Santiago Araújo Júnior, psiquiatra e professor do curso de Medicina da Universidade Tiradentes (Unit). 

De acordo com ele, o vício em jogo é entendido como resultado de uma combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais, e que afeta a mente de maneiras complexas. No aspecto neurobiológico, ele envolve o sistema de recompensa do cérebro, particularmente a via dopaminérgica, similar ao que ocorre em outros transtornos de dependência. Pessoas com predisposições genéticas, traços de impulsividade, ou que estão expostas a altos níveis de estresse podem estar mais vulneráveis ao desenvolvimento do vício em jogo. E é aqui que entram os aspectos psicológicos e sociais que favorecem o vício. 

“Inicialmente, o jogo ativa o sistema de recompensa do cérebro, criando uma sensação de prazer. Com o tempo, no entanto, o jogador pode se tornar ‘viciado’ na excitação do jogo, independentemente do resultado financeiro. Isso vai além de uma simples busca por dinheiro; envolve a busca por uma estimulação emocional e alívio do estresse ou ansiedade. Há também o fenômeno da ‘falácia do jogador’, onde a pessoa acredita que pode prever ou influenciar o resultado de jogos de azar, o que perpetua o ciclo de jogo”, detalha César.

Ajuda para se tratar

Ainda não há estatísticas oficiais consolidadas sobre a incidência desse transtorno, mas uma estimativa feita pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) aponta que exista hoje uma média de 2 milhões de pessoas com ludopatia no Brasil. Um termômetro da situação pode ser medido na procura pelos grupos de apoio para tratamento, como a ONG Jogadores Anônimos

A irmandade fundada em 1957 funciona de forma semelhante aos Alcoólicos Anônimos e reúne pessoas viciadas em jogos para compartilhar as suas experiências e se ajudarem dentro da linha de conduta baseada nos lemas “Um dia de cada vez” e “Só por hoje”. Uma reportagem publicada em fevereiro pelo portal UOL mostrou que uma média de duas ou três pessoas por dia procuram a ONG em busca de ajuda para largar o vício, e que a maioria delas é de pessoas jovens, abaixo dos 35 anos, mas também há menores de idade. 

Boa parte desta demanda também acaba desaguando nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), para onde os pacientes são encaminhados através da rede básica de saúde. Um aumento que, de acordo com Augusto César, coloca uma pressão adicional sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), que muitas vezes já está sobrecarregado. “Em muitos casos, há uma falta de profissionais treinados especificamente para lidar com vícios comportamentais, e os serviços disponíveis podem não ser suficientes para atender a todos os necessitados. Além disso, o estigma associado ao vício em jogo pode impedir que muitos busquem ajuda até que estejam em uma situação crítica”, avalia. 

O professor da Unit acredita em evidências crescentes de que a popularização das apostas eletrônicas e dos cassinos online tem levado a um aumento na demanda por serviços psiquiátricos e psicológicos. “Embora seja difícil mensurar com precisão devido à falta de dados específicos em algumas regiões, estudos internacionais indicam um aumento significativo nos casos de vício em jogo, especialmente entre jovens adultos. Esse fenômeno pode ser medido pelo aumento no número de diagnósticos de transtorno do jogo e pela maior procura por serviços de tratamento especializados”, diz.

Além do trabalho dos Jogadores Anônimos e de programas de autoajuda, o tratamento da ludopatia envolve geralmente técnicas de psicoterapia, como a terapia cognitivo-comportamental (TCC), que ajuda os pacientes a identificar e modificar padrões de pensamento distorcidos e comportamentos relacionados ao jogo. Em alguns casos, a terapia é acompanhada da medicação com antidepressivos e estabilizadores de humor, entre outros.

Políticas públicas

Augusto César é categórico ao apontar que a legalização das apostas e dos jogos de azar, promovida pela “Lei das Bets” e por outros projetos já apresentados no Congresso Nacional,  pode potencialmente agravar a situação dos viciados em jogo, especialmente se não for acompanhada por medidas de controle e prevenção. Para ele, o aumento do acesso a esses jogos pode levar a um aumento no número de pessoas vulneráveis ao desenvolvimento de vícios, particularmente entre aqueles que já têm predisposição a problemas de saúde mental. 

Por outro lado, o professor acredita que a discussão sobre a legalização das bets traz uma oportunidade para implementar regulamentações mais rigorosas e programas de educação pública sobre os riscos do jogo. “Políticas públicas eficazes para combater o vício em jogos devem incluir a regulamentação estrita dos operadores de jogos, com exigências para identificar e ajudar jogadores problemáticos. Isso pode incluir limites de apostas, autoexclusão, e a obrigatoriedade de exibir mensagens de aviso sobre os riscos do jogo. Além disso, é essencial investir em campanhas de conscientização pública e programas de prevenção, bem como na formação de profissionais de saúde para identificar e tratar o vício em jogo. A criação de serviços de suporte e linhas de ajuda dedicadas também pode ser uma medida eficaz”, orienta César.

Leia mais: 
Projeto de Lei propõe marco legal para jogos eletrônicos no Brasil
Jogos de azar no Brasil: é ilegal ou não?

Compartilhe: