Imagine um plástico capaz de se degradar naturalmente em poucos meses, sem gerar microplásticos ou comprometer ecossistemas. Essa é a proposta dos polihidroxialcanoatos (PHAs), biopolímeros produzidos por bactérias a partir de resíduos orgânicos. Ele possui propriedades termoplásticas comparáveis aos plásticos convencionais, mas se degrada rapidamente em ambientes naturais e é biocompatível. Por isso, oferece uma rota concreta para substituir polímeros derivados de petróleo, reduzir emissões de CO₂ e minimizar a poluição por microplásticos que hoje ameaça solos, oceanos e a saúde humana.
Pensando nisso, e motivada pela busca por soluções sustentáveis que unam inovação científica e responsabilidade ambiental, a doutoranda Giovanna Clarice de Souza Santos, do Programa de Pós-Graduação em Biociências e Saúde da Universidade Tiradentes (Unit), dedica-se ao desenvolvimento de PHAs a partir de resíduos agroindustriais do Nordeste. Segundo Giovanna, o projeto utiliza como matéria-prima a borra de dendê e a manipueira, subprodutos dos processos de extração de óleo de palma e de produção de mandioca, respectivamente. “São resíduos gerados em larga escala e normalmente descartados de forma inadequada, o que agrava a contaminação de solos e águas. Convertê-los em bioplásticos é dar valor agregado a esses materiais e fortalecer a economia circular local”, explica.
O estudo de Giovanna faz parte do projeto “Produção de poli(hidroxialcanoato) por bactérias utilizando resíduos agroindustriais”, vinculado à Linha 2 – Processos e Produtos Tecnológicos a partir de Recursos da Biodiversidade, do PBS da Unit. Além dela, integram o grupo os pesquisadores Fabianny Costa Almeida, Rodrigo de Oliveira Santana, Tábata Cristina Guimarães, sob orientação da Prof.ª Dra. María Lucila Hernández Macedo. O projeto também conta com apoio técnico e científico dos colegas Esther Santana, Pedro Henrique, Ana Clara, Samuel Oliveira e Isabella Miranda, todos vinculados ao Laboratório de Biologia Molecular (LBM), com suporte do Laboratório de Biomateriais (LBMAT) e do Laboratório de Nanotecnologia e Nanomedicina (LNMED).
Uma nova vida para resíduos do campo
A pesquisadora explica que, quando o ambiente tem muito carbono disponível, mas quase nenhum nitrogênio, a bactéria passa a usar sua principal fonte de energia, chamada acetil-CoA, para produzir o bioplástico. “Primeiro, acontece uma união entre duas moléculas dessa substância, formando um novo composto. Depois, esse composto passa por uma transformação química que o prepara para a próxima fase. Por fim, entra em ação uma enzima, uma espécie de ‘máquina biológica’ que junta várias dessas unidades, como se estivesse montando uma corrente. Esse processo forma o bioplástico, que vai sendo armazenado em pequenos grãos dentro da célula”, detalha.
Para o estudo, foram usadas bactérias encontradas em áreas de manguezal de Sergipe, principalmente dos tipos Bacillus e Pseudomonas. A escolha desses microrganismos foi intencional. “Em certas condições, essas bactérias mudam seu funcionamento natural para produzir um tipo de plástico natural chamado PHA, que serve como uma forma de guardar energia. Conseguimos um rendimento de 35,4% (0,17 gramas por litro) de PHA usando a bactéria do tipo Pseudomonas com a manipueira, e 29,6% (0,08 gramas por litro) com a do tipo Bacillus. Isso mostra que o processo pode ser viável economicamente e que tanto a manipueira quanto a borra de dendê podem ser usadas como matérias-primas baratas, ajudando a diminuir os danos ao meio ambiente e incentivando o reaproveitamento de resíduos”, explica.
O impacto ambiental e econômico dessa pesquisa é significativo. Cada quilo de PHA produzido a partir desses resíduos evita tanto a queima de recursos fósseis quanto o descarte de efluentes ricos em carga orgânica. “Além disso, o PHA se degrada em solos e ambientes marinhos em questão de meses, eliminando a persistência de microplásticos e contribuindo diretamente para diversas metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, como saúde e bem-estar (ODS 3), água potável e saneamento (ODS 6), indústria, inovação e infraestrutura (ODS 9), consumo e produção responsáveis (ODS 12) e ação contra a mudança global do clima (ODS 13). A pesquisa, portanto, aponta para uma rota viável para reduzir o consumo de plásticos derivados do petróleo”, pontua.
Sustentabilidade em escala: desafios e potencial
A pesquisa aponta para um futuro em que a produção de bioplásticos em larga escala se torne realidade. Contudo, Giovanna alerta que para isso acontecer, é preciso superar desafios logísticos e tecnológicos. “É necessário melhorar a logística de coleta dos resíduos, otimizar o rendimento dos biorreatores e desenvolver métodos de extração menos agressivos. Além disso, políticas públicas com incentivos fiscais e compras governamentais de bioplásticos são essenciais”, defende.
Se implementada, a biotecnologia baseada em PHAs poderia reduzir significativamente a dependência de plásticos convencionais e os impactos dos resíduos industriais. “Cada quilo de PHA representa menos petróleo queimado e menos resíduo despejado no meio ambiente”, afirma Giovanna.
Da iniciação científica ao doutorado
O interesse de Giovanna pela biotecnologia e sustentabilidade surgiu de uma busca por convergência entre saúde humana, biotecnologia e sustentabilidade. Ela optou pela Biomedicina no vestibular, e sua paixão pela pesquisa ambiental se consolidou na iniciação científica. “Pude aplicar métodos de biologia molecular para resolver problemas ambientais, como biorremediação de pesticidas e depois o reaproveitamento de efluentes agroindustriais para produzir bioplásticos. A partir daí, ficou claro que um dos meus propósitos seria pesquisar soluções que protejam o meio ambiente enquanto promovem saúde”, afirma.
A iniciação científica, realizada no Laboratório de Biologia Molecular, foi um divisor de águas em sua formação. “A orientação de pesquisadores experientes e a convivência com colegas igualmente dedicados tornaram o processo de aprendizagem mais motivador. Além disso, me ajudou a superar a timidez inicial, ao perceber a importância de participar ativamente de discussões e projetos”, relata. Essa experiência aprimorou suas competências técnicas e moldou seu perfil como pesquisadora, proporcionando segurança para apresentar ideias, questionar resultados e assumir responsabilidades.
A pesquisadora pretende seguir carreira acadêmica, aprofundando-se em biologia molecular e biotecnologia de biopolímeros. “Quero explorar os sistemas de produção de PHA e sua aplicabilidade no meio ambiente de forma inteligente e tecnológica”, afirma. Para os estudantes de graduação que almejam seguir o caminho da pesquisa científica, ela deixa um conselho. “Tenha curiosidade e persistência. Procure um tema que te encante e mergulhe na literatura, pois quando o assunto faz sentido para você, o trabalho deixa de ser obrigação e se transforma em jornada de crescimento. Além disso, as dificuldades sempre existirão, mas elas são parte do processo que forja pesquisadores resilientes”, completa.
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