O Ciclo de Debates realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGD) da Universidade Tiradentes (Unit) é uma iniciativa que promove, a cada semestre, discussões de grande relevância para questões de justiça social e direitos humanos na América Latina. Esse projeto visa expandir o entendimento acadêmico e social sobre temas que vão desde políticas públicas e minorias até os direitos dos povos indígenas e a preservação cultural.
Dessa vez, o debate trouxe para o centro das atenções a realidade da comunidade Xocó, reconhecida como a única etnia indígena em Sergipe, a comunidade enfrenta desafios urgentes relacionados à desterritorialização, invisibilidade e preconceito, que afetam profundamente sua cultura e espiritualidade. Para o professor Fran Espinoza, o Ciclo de Debates é uma oportunidade para os alunos aprofundarem seu entendimento sobre a realidade indígena e o papel das políticas públicas no apoio a essas comunidades.
“Apresentamos os resultados de uma pesquisa do Projeto Laboratório Social, que aborda a segurança alimentar na comunidade Xocó, além de uma pesquisa de doutorado sobre o dano espiritual nesta mesma comunidade. Na disciplina que ministro no mestrado, ‘Democracia e Políticas Públicas’, buscamos explorar, de maneira prática, diferentes realidades sociais, desde Sergipe até outros contextos da América Latina. Ao iniciar a disciplina, sempre proponho aos alunos uma ‘viagem’ pelo Brasil e pela América Latina para conectar essas realidades, especialmente no que diz respeito às comunidades indígenas”, elenca Fran.
O objetivo desta apresentação é despertar o interesse dos alunos, já que muitos deles desconhecem a realidade da comunidade Xocó. “Até agora, temos diversas publicações sobre o tema: já lançamos livros, publicamos artigos em revistas científicas, incluindo algumas em inglês, e estamos programando um novo livro para o próximo ano. É interessante observar que, quando os alunos começam as pesquisas, quase nada sabem sobre a comunidade Xocó e, aos poucos, com o apoio dos professores e das parcerias internacionais que temos com a Universidade de Deusto Valladolid, eles começam a se envolver e a entender melhor esse universo”, detalha o professor.
Implementação de políticas públicas
A aluna de Direito da Unit, Ketlyn Suyanne Pereira, que também participa do Laboratório Social, reforça a necessidade de avaliações contínuas das políticas públicas implementadas na comunidade. Em sua pesquisa, Ketlyn observou que muitos dos projetos lançados na comunidade não são de conhecimento dos próprios moradores, como iniciativas ambientais que visam a criação de viveiros e produção de mel, por exemplo. Ketlyn propôs o uso de indicadores para medir o impacto dessas ações, destacando que a simples implementação de um projeto não é suficiente; muitos são abandonados antes de alcançarem a meta.
“O objetivo da pesquisa é compreender como essas políticas, aplicadas no período de 2010 a 2023, foram recebidas pela comunidade e como isso influencia na realização dos objetivos traçados. Além de buscar responder de que forma o acesso à informação sobre as políticas públicas incide na concretização dos seus objetivos. Para isso, realizamos um estudo teórico fundamentado no livro ‘Democracia e Políticas Públicas: Uma Reflexão a partir do Nordeste Brasileiro’, do professor Fran. A partir dessa base, estudamos as visitas às comunidades e discutimos o que significa ser indígena, o que caracteriza uma política pública e como o direito à alimentação está protegido por diplomas legais, desde a Constituição Federal até a Declaração Universal dos Direitos Humanos”, explicou a estudante.
Dano espiritual: além do impacto material
Maurício Soares, advogado e doutorando em Direitos Humanos, que pesquisa o “dano espiritual” entre os Xocós, apresentou sua pesquisa sobre os impactos não materiais da perda de território e dos espaços sagrados para o povo Xocó. Para Maurício, o conceito de dano espiritual é essencial para entender como a cultura e a espiritualidade dos Xocós foram afetadas ao longo dos anos. “Essa perda gera um vazio identitário que dificilmente pode ser suprido por políticas públicas convencionais,” explica ele. Sua pesquisa busca expandir o entendimento jurídico sobre o que constitui um direito indígena, sugerindo que o dano espiritual seja considerado nas discussões de proteção cultural e legal das terras indígenas.
O estudo do dano espiritual propõe uma visão mais holística da questão indígena, abordando o território não apenas como um espaço geográfico, mas como um componente vital para a identidade e espiritualidade dos povos originários. “Trazer esse conceito para o debate jurídico pode abrir portas para novas formas de proteção e respeito às tradições culturais dos povos indígenas contribuindo para uma justiça que reconheça os aspectos imateriais da perda territorial”, elenca.
Desconstruindo estereótipos
O mestrando em Direitos Humanos, Emílio Ramos, que participou do ciclo de debates, enfatiza a relevância de compreender as perdas territoriais e culturais que marcam a trajetória dos Xocós. Emílio revelou que muitos estudantes desconheciam a realidade indígena de Sergipe até o contato com a disciplina. “Percebo que precisamos, antes de tudo, conhecer mais sobre a comunidade e entender o impacto da destituição de seus territórios originários. Essa perda territorial trouxe consequências como o esquecimento e problemas identitários. Essas pesquisas nos ajudam a resgatar nossa ancestralidade e a compreender questões históricas, sociais e culturais que ainda se refletem atualmente”, ressalta.
Ele conta que começou a ouvir mais frequentemente sobre a comunidade Xocó e sobre os trabalhos científicos relacionados a partir da disciplina “Democracia, Políticas Públicas e Direitos”. “Através dessa disciplina, começamos a estudar pesquisas e trabalhos científicos, muitos conduzidos por estudantes da nossa universidade e orientados pelo professor Fran. São pesquisadores que foram até a comunidade Xocó para levantar dados que, até então, eram pouco conhecidos sobre essa comunidade tão relevante. A importância é imensa, difícil até de mensurar. Esse conhecimento nos permite valorizar e incentivar mais pesquisas, para que novos pesquisadores investiguem a situação dessas comunidades tão importantes”, completa o mestrando.
A estudante de pós-graduação em Direito, Paula Oliveira, é descendente de uma família indígena, e conta sobre os desafios de se reconhecer como indígena em um contexto onde a imagem do indígena é frequentemente reduzida a estereótipos. Além disso, ela enfatizou que encontros como o Ciclo de Debates ajudam a desconstruir esses estereótipos, evidenciando a diversidade cultural e as diferentes realidades dos povos indígenas no Brasil.
“O que prevalece, muitas vezes, é uma imagem limitada, onde o indígena é visto apenas como aquele da Amazônia, vivendo em ocas, com características físicas específicas, como cabelo liso e traços marcantes. No entanto, quando olhamos para o povo Xocó e outras comunidades, percebemos que esse estereótipo não representa a diversidade indígena. Essas palestras são importantes porque fazem parte da nossa identidade, mesmo que muitos de nós não nos identifiquemos diretamente como indígenas. É essencial reconhecer e valorizar essa herança para evitar o apagamento de nossa história. Essa abordagem destaca a importância de acompanhar as políticas para garantir que sejam realmente eficazes, e não apenas iniciativas isoladas”, ressalta Paula.
Leia também: Ciclo de Debates discute populismo punitivo e novo autoritarismo na América Latina