Os últimos anos vêm registrando uma frequência crescente e recorrente dos casos de racismo e de injúria racial, principalmente em brigas e confusões que acontecem pelo Brasil. Alguns casos dos últimos dias ganharam destaque no noticiário e na opinião pública, principalmente em bares, ruas e escolas de classe média alta. Mas algumas estatísticas recentes chamaram mais a atenção. Uma, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta que o número de processos judiciais abertos por injúria racial, em todo o país, registrou uma alta de 610% na comparação entre 2020 e 2023, saltando de 675 para 4.798.
Outro dado alarmante veio do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP): os registros de racismo saltaram de 5.100 em 2022 para 11.610 em 2023, representando uma alta de 77,9%, enquanto que os de injúria racial, mesmo tendo subido de 12.237 para 13.897 no mesmo período, teve uma queda na taxa de ocorrências para cada 100 mil habitantes, de 8,1 para 7,0.
No texto da legislação, existe uma diferenciação nos conceitos jurídicos dos dois crimes. A injúria racial é tipificada no artigo 140 do Código Penal como um “crime contra a honra subjetiva da vítima” e caracterizada quando alguém, com o intuito de desmerecer, ridicularizar, diminuir ou de menosprezar, ofende a dignidade ou o decoro da vítima, em razão de sua raça, cor, etnia ou procedência nacional. Já o racismo, tipificado pela Lei Caó (7.716/1989), atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça, e engloba todos os crimes relacionados ao preconceito.
“Deve-se entender que o crime de injúria, na verdade, constitui-se em uma espécie do gênero denominado de racismo, não havendo qualquer tipo de diferença entre eles, muito pelo contrário. Portanto, resumidamente, podemos dizer que todas as condutas, previstas na legislação penal, que tenham no seu âmago aspectos inerentes à raça, cor, etnia ou procedência nacional, e acrescento também a religião, serão caracterizadas como Crimes de Raciais ou Crimes de Racismo”, explicou o professor-doutor Eduardo Santiago Pereira, do curso de Direito da Universidade Tiradentes (Unit).
Em janeiro de 2023, o presidente Luís Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.532/2023, que igualou a injúria racial ao crime de racismo, aplicando as mesmas punições previstas pela Lei Caó: penas entre 2 e 5 anos de prisão, além do pagamento de multa. “A partir da Constituição de 1988, já se definia que a prática do racismo deveria ser classificada como crime, e não apenas como contravenção penal, conforme ocorria até então. Além disso, determinou-se que tais condutas passariam a ser punidas com pena de reclusão e classificadas como imprescritíveis e inafiançáveis”, contextualiza Santiago.
Disparada de casos
É neste contexto jurídico em que acontece a disparada de casos envolvendo a injúria racial e o racismo em si. Os dados isolados em cada estado brasileiro chamam ainda mais atenção. O próprio Anuário da FBSP aponta que as maiores variações de crescimento dos crimes de injúria racial entre 2022 e 2023 foram registrados no Rio Grande do Norte (1.900%), no Tocantins (900%), no Pará (53,9%) e em Santa Catarina (51,7%), enquanto que as de racismo, no mesmo período, se deram no Paraná (630%), no Rio Grande do Norte (345,7%), no Mato Grosso do Sul (342,6%) e no Maranhão (319,6%).
Para o professor Eduardo Santiago, “esse aumento estaria diretamente associado à conscientização da população, à divulgação crítica dos casos de racismo por parte dos meios de comunicação e à reprovação social, que, em conjunto, têm incentivado as vítimas a colocarem essa questão na pauta do dia e a buscarem, incondicionalmente, por seus direitos nas esferas cível e criminal”.
No relatório do CNJ, a grande maioria dos processos judiciais por injúria racial abertos em 2023 são do estado da Bahia, que teve 4.049 casos – um aumento de 647% em três anos. Já no Anuário da FBSP, em um ano, as ocorrências de injúria racial registradas na Bahia foram de 840 para 884, enquanto que as de racismo pularam de 361 para 552, com variação de 52,9%. Detalhe: segundo os dados do Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 80,8% da população baiana se autodeclara preta ou parda.
Este recorte dos dados surpreendeu muita gente, mas não os especialistas que acompanham a questão mais de perto. “Os números históricos já indicavam a força dos problemas raciais na Bahia, principalmente quando se analisa a questão racial a partir dos dados econômicos e sociais. Desta feita, note-se que os números, comparativos, entre a população negra e branca, são avassaladores em todos os estados brasileiros, sendo ainda mais preponderantes em terras baianas”, diz Santiago.
Ainda de acordo com o professor, estes problemas são reflexo das relações de poder, político e econômico, da valorização histórica, organização cultural e da divisão do espaço e do papel que cada grupo social e racial ocupa na estrutura da sociedade brasileira. No entanto, o combate às práticas discriminatórias será eficaz a partir da aplicação das leis e da conscientização de toda a sociedade. “Enquanto tais relações continuarem sendo regidas pela mesma lógica, dificilmente teremos alteração, de fato, nesse status quo. Contudo, em termos práticos, afirmo que somente a constante e severa certeza de punição exemplar, aliada à reprovação social de tais condutas, poderá funcionar como instrumento real para a redução de tais índices”, considera.
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