Uma das consequências mais temidas das mudanças climáticas aparece em determinados locais e períodos, a depender das condições atmosféricas e do estado do tempo em cada região. São as ondas de calor, com temperaturas muito acima do normal que se prolongam por vários dias e fora da época habitual. Há alguns anos atrás, esse fenômeno chamava mais atenção quando ocorria em grandes cidades da Europa, dos Estados Unidos e do Canadá, provocando dezenas de mortes e sofrimento em milhões de pessoas.
Com o aumento da temperatura média no planeta, a comunidade científica constata o que ela já vinha prevendo há muito tempo: ondas de calor cada vez mais frequentes e mais fortes em praticamente todas as regiões do planeta, inclusive no Brasil. Um dado recente que aponta para este fato aparece em uma pesquisa divulgada pelo Laboratório de Extremos Climáticos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela aponta que, até o ano de 2071, os chamados “bloqueios atmosféricos”, que se formam por reflexo do calor e impedem a formação de frentes frias, devem ficar até 10 vezes mais potentes, aumentando ainda mais as temperaturas das ondas de calor.
“Essas ondas estão cada vez mais frequentes devido às mudanças climáticas globais, aos sistemas de alta pressão estacionários (anticiclones) que bloqueiam a circulação de ar fresco, às ilhas de calor urbano em cidades com pouca cobertura vegetal e muito asfalto, e a fenômenos naturais, como o El Niño, que devido ao aquecimento dos oceanos, pode alterar os padrões climáticos”, explica a professora e pesquisadora Cláudia Moura de Melo, do Programa de Pós-Graduação em Biociências e Saúde (PBS), acrescentando que estas ondas de calor costumam ter uma duração mínima de dois dias, mas podem se estender por vários dias ou semanas de temperaturas anormais”, confirma.
Mas não é somente nos oceanos e nos ares. Nas cidades, as chamadas “ilhas de calor” são criadas a partir da concentração de altas temperaturas incidentais de origem humana, que não são dispersadas pela formação de sombras. Cláudia mostra que isso acontece, principalmente, em razão da supressão de áreas verdes e da arborização urbana, da cobertura asfáltica, da poluição do ar e do trânsito automotivo. E que o desconforto causado por ela afeta os serviços e infraestrutura pelo uso excessivo de energia elétrica para refrigeração, gerando colapsos no fornecimento. Esta é a mais provável causa para o apagão que atingiu Portugal, Espanha, Andorra e parte da França, em 28 de abril.
De acordo com a professora, as ondas de calor e os eventos extremos tendem a ser mais frequentes e prolongados, com aumento da temperatura média global em consequência do aquecimento global. “Este fenômeno é impulsionado principalmente pela emissão de gases de efeito estufa (como CO₂ e metano) provenientes da queima de combustíveis fósseis, desmatamento e atividades industriais. O efeito estufa reduz a velocidade das correntes de ar em altas altitudes, criando sistemas de alta pressão, que podem reter o calor por semanas, alterando assim os padrões climáticos de várias regiões do planeta”, detalha.
Impactos do calor
Os impactos mais graves do calor extremo recaem principalmente sobre a saúde das pessoas que moram nas regiões afetadas. Um exemplo disso foi percebido no Rio de Janeiro, em 18 de novembro de 2023, quando a temperatura média da cidade bateu a casa dos 44ºC por oito horas seguidas. Neste dia, segundo a prefeitura da capital fluminense, 151 idosos morreram por causas relacionadas ao calor. Já em outubro do ano passado, um estudo divulgado pela revista científica britânica The Lancet apontou que as mortes de idosos acima de 65 anos por causa do calor tiveram um aumento de 167% em comparação com a década de 1990, subindo 102 pontos percentuais a mais do que os 65% que seriam esperados sem o aumento da temperatura global.
Atualmente, as ondas de calor são consideradas a principal causa de mortes provocadas pelo clima, especialmente em idosos acima de 65 anos e em crianças abaixo de cinco anos. “Vários estudos abordam os aspectos fisiológicos, psicológicos e comorbidades como fatores de risco para o aumento da vulnerabilidade aos efeitos das ondas de calor. Dentro da população idosa, fatores como redução funcional da mobilidade, comprometimento cognitivo, isolamento social refletido por não ter ninguém para pedir ajuda durante a dificuldade aumentam o risco de morte. Entre as crianças, há a dificuldade do organismo em controlar a temperatura quando expostas ao calor extremo”, detalha a professora.
Entre os principais efeitos colaterais do calor extremo, estão a desidratação e o agravamento das doenças respiratórias e cardiovasculares. “Com a hipertermia em função da exposição prolongada ao calor extremo, o corpo fica menos capaz de compensar, provocando em casos graves, vasodilatação, hipovolemia (diminuição do volume de líquido no corpo, levando a uma redução no fluxo sanguíneo, resultando em lesões nos tecidos), queda da pressão arterial e por consequência, o choque cardiogênico (insuficiência no bombeamento de sangue), má perfusão, lesão isquêmica e disfunção do sistema nervoso central”, cita Cláudia.
Além do estado físico, a saúde mental também pode ser seriamente afetada pelas ondas de calor, através de impactos como o aumento da irritabilidade e estresse, distúrbios do sono, agravamento de transtornos mentais pré-existentes (ansiedade, depressão etc). Segundo a professora do PBS, a chamada “ecoansiedade” ou “ansiedade climática” é definida pela Associação Americana de Psicologia como “um sentimento generalizado de angústia e preocupação com as consequências das mudanças climáticas, pois trazem uma sensação de desamparo, desesperança e tristeza às pessoas afetadas pelos eventos climáticos extremos”. Cerca de 25% a 50% das pessoas expostas a um desastre climático têm risco de desenvolver problemas de saúde mental.
Desigualdade nas cidades
A piora das condições climáticas levanta ainda mais um desdobramento: a desigualdade social e ambiental das pessoas que vivem nas regiões afetadas. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), cerca de 8,2 milhões de pessoas vivem em áreas de risco para enxurradas, alagamentos e deslizamentos. E 26,1% desta população vivem em áreas sem acesso a saneamento básico. Se contadas as áreas e populações que dispõem de pouca ou nenhuma área verde preservada, o contingente torna-se ainda maior. “De maneira geral, os mais afetados pelas alterações climáticas são as populações em estado de vulnerabilidade e racismo ambiental, pois as áreas destinadas às essas pessoas são menos favorecidas de infraestrutura básica e muitas vezes ausentes de qualquer ação prioritária do poder público”, pontua Cláudia.
A pesquisadora ressalta que, no caso do estado do Rio Grande do Sul, atingido pelas enchentes e tempestades de maio de 2024, o problema foi generalizado porque pois grande parte da geografia da região de confluência das águas (principalmente a capital Porto Alegre) foi alterada ao longo dos últimos anos, sem a previsibilidade ou a consideração da origem natural do terreno. “Com a presença de um evento extremo (excesso de calor e de chuvas), as consequências foram superlativas e praticamente toda a população do estado foi afetada”, acrescenta ela. Ao todo, foram 184 mortes confirmadas e quase 4,5 milhões de pessoas afetadas, entre feridos, desabrigados e desalojados.
Para o enfrentamento destes fenômenos climáticos, sobretudo das ondas de calor, os especialistas vêm apelando pela criação de mais áreas verdes nos bairros e nas cidades, além de programas mais intensos de arborização de ruas e praças. Para a professora do PBS, a construção de sistemas de espaços verdes provou ser um meio eficaz de mitigar o impacto das ondas de calor, desacelerar o efeito de ilhas de calor urbanas e regular a saúde mental. “A presença de parques, jardins e florestas urbanas pode reduzir significativamente as temperaturas ambientes por meio da evapotranspiração e da sombra. Além disso, o ambiente esteticamente agradável dos espaços verdes promove uma sensação de paz e relaxamento frequentemente ausente em cidades populosas”, conclui Cláudia.
Leia mais:
Pós-graduação em Neuropsicopedagogia promove intervenção cognitiva com idosos
Semana de Psicologia aborda saúde mental em tempos de crise e emergências climáticas
Como cuidar da saúde mental das vítimas de desastres?