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Como cuidar da saúde mental das vítimas de desastres? 

Tragédia causada pelas chuvas no Rio Grande do Sul mostra a necessidade de treinamento e formação de profissionais de saúde para o atendimento psicológico dos que sofrem com catástrofes

às 19h46
As equipes multiprofissionais e interdisciplinares de saúde têm sido fundamentais no atendimento aos desabrigados pelas chuvas nas cidades gaúchas (Cristine Rochol/PMPA)
As equipes multiprofissionais e interdisciplinares de saúde têm sido fundamentais no atendimento aos desabrigados pelas chuvas nas cidades gaúchas (Cristine Rochol/PMPA)
A professora Marília Meneghetti Bruhn, do curso de Psicologia da Unit (Reprodução/Lattes)
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As chuvas e enchentes que arrasaram cidades inteiras no estado do Rio Grande do Sul abriram feridas profundas em sua população. E não apenas em relação a danos materiais ou perdas humanas (163 mortos, 806 feridos e 65 desaparecidos até a manhã do dia 24, segundo dados da Defesa Civil gaúcha). Muitas pessoas, principalmente crianças, idosos e pessoas com transtornos, passaram a conviver com violentos traumas. Sobreviventes e desabrigados relatam ter desenvolvido até mesmo o medo do barulho da chuva, enquanto voluntários e profissionais de saúde, segurança e imprensa se mostram abalados e esgotados ao ouvir e conviver com os dramas de pessoas que perderam tudo. 

Em meio a situações de emergência e calamidade pública, como enchentes, incêndios, terremotos e guerras, o trabalho de profissionais de saúde mental, como psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, vem sendo bastante demandado e solicitado, de modo a garantir um suporte às vítimas. 

“As principais demandas de saúde mental que surgem depois de desastres ou situações de emergência implicam em conseguir ressignificar processos de intensas perdas socioafetivas, lutos, violação de direitos humanos e aniquilamento de recursos materiais. São eventos repentinos, que muitas vezes não são esperados pela população, e que de forma contundente leva-nos a questionar os recursos psicológicos e sociais que temos para lidar com acontecimentos trágicos”, explica a professora Marília Meneghetti Bruhn, do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes (Unit). 

Uma das intervenções recomendadas para o atendimento imediato das vítimas de desastres ou tragédias estão nos chamados Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP), um protocolo elaborado pela Organização Mundial da Saúde, que teve uma cartilha lançada recentemente pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP/RS). De acordo com Marília, os PCPs podem ser conhecidos aplicados por diversos profissionais, inclusive que não sejam da área da saúde. E que eles se caracterizam principalmente por uma escuta atenta e acolhedora, sem pressionar a pessoa a contar o que aconteceu e em que ordem os eventos ocorreram. 

“A escuta deve ser feita sem julgamentos e sem invalidações de como a pessoa está se sentindo. Nesse momento inicial, também é de extrema importância fazer a avaliação de quais pessoas apresentam quadros graves de sofrimento mental e realizar o adequado encaminhamento para cuidados especializados de saúde. A maioria da população atingida apresentará sofrimento intenso devido ao desastre, mas conseguirá encontrar suporte em estratégias de cuidado comunitário”, detalha Marília, acrescentando que existem poucos casos com necessidade de escuta especializada do psicólogo e, até mesmo, de intervenção psiquiátrica e farmacológica específica.

Modo de agir

E como os profissionais de Psicologia devem agir em situações de catástrofes, desastres e tragédias? A professora orienta que essa ação deve ser articulada com uma equipe multiprofissional de saúde mental, com a comunidade e com ações integrais para lidar com as perdas materiais e imateriais. Ou seja, essa equipe deve contar com psicólogos, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e outros profissionais que componham as políticas públicas de atenção à saúde mental. 

Para ela, as equipes multiprofissionais e interdisciplinares contribuem para o atendimento em uma perspectiva biopsicossocial, que colabora para que todas as necessidades do usuário do serviço de saúde sejam consideradas no atendimento. “É fundamental que o psicólogo não aja individualmente, mas busque se integrar a trabalhos coordenados coletivamente. Também é essencial que apenas profissionais de Psicologia que tenham conhecimento e habilitação na área de emergências para assumir responsabilidades profissionais em desastres. Infelizmente, muitos psicólogos que não tem capacidade pessoal, teórica e técnica buscam ‘ajudar’ e acabam produzindo mais sofrimento e desorganização comunitária”, frisa. 

Essa atuação exige que cada psicólogo tenha conhecimentos atualizados de primeiros cuidados psicológicos, de acordo com as orientações dos conselhos de Psicologia e da OMS. A professora lembra que o profissional deve ter condições pessoais para lidar com o desastre e ter capacidade de se articular com equipes multiprofissionais, além de estar disponível para acolher e aprender de acordo com as características culturais no território em que estiver atuando. 

“Acima de tudo, é essencial que o profissional de Psicologia tenha noção das suas limitações e, muitas vezes, da sua insignificância diante de grandes catástrofes. A verdade é que há pouco que podemos fazer individualmente como psicólogos em emergência e, se tentarmos assumir os papeis de ‘salvadores’, ‘especialistas’ ou ‘protagonistas’, só dificultamos o processo de fortalecimento comunitário”, ressalta Marília.

Formação

A tragédia recente no Rio Grande do Sul e a possibilidade de que outras catástrofes climáticas aconteçam futuramente no Brasil chamam a atenção para a necessidade de tratar o tema na formação dos futuros psicólogos e dos novos profissionais de saúde. As disciplinas dos cursos de graduação abordam tópicos relacionados a acolhimento psicológico, intervenções comunitárias, políticas públicas e direitos humanos. No entanto, de acordo com a professora, não costumam haver disciplinas e estágios que ensinem sobre a atuação do profissional de saúde na gestão de desastres e emergências. 

“Assim, a maioria dos psicólogos e outros profissionais da área de saúde precisam buscar conhecimentos e experiências em pós-graduações, depois de concluírem a graduação, para se habilitarem para atendimentos em catástrofes. A enchente no Rio Grande do Sul é um lembrete para professores e alunos se implicarem em um formação em saúde mental que capacite profissionais de saúde para atendimentos no contexto de desastres e emergências. Antes que outra emergência aconteça, precisamos nos preparar para saber o que devemos e o que não devemos fazer em situações de desastres”, alerta Bruhn.

Sensações de impotência

A própria professora, que é gaúcha e mora há poucos meses em Aracaju, vivencia esse drama à distância, pois tem familiares, amigos e colegas de profissão que vivem em cidades afetadas pelas chuvas, incluindo a capital, Porto Alegre. Como professora e psicóloga, ela tem experiência no atendimento a imigrantes haitianos que enfrentaram desastres ambientais e na formação de profissionais de saúde que atuaram em outras tragédias, como o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), em janeiro de 2013, que deixou 242 mortos e 636 feridos. 

Mesmo assim, Marília admite que acompanhar o desastre climático à distância sem poder atuar em campo tem sido uma vivência inédita em sua vida. “Também não posso oferecer atendimentos online que não são adequados em uma situação de emergência. Está sendo um aprendizado ter que lidar com a minha impotência em uma situação assim: não tenho como chegar no Rio Grande do Sul e também não tenho como trazer meus pais para Aracaju de avião devido ao fechamento do aeroporto de Porto Alegre”, conta ela, que tem mantido contato com colegas que estão em campo e colocado-se à disposição deles. 

“Um dos principais desafios que meus colegas têm enfrentado são os conflitos nos abrigos para vítimas das enchentes, que terão que passar vários meses convivendo com pessoas de diferentes culturas em um ambiente restrito até que possam reconstruir suas casas. Aqui em Aracaju, essa tragédia no Rio Grande do Sul tem me estimulado a pensar no meu papel como professora de ensino superior na formação de psicólogos que estejam preparados para acolher para além de uma perspectiva individualizada de clínica”, conclui Marília.

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