ESTUDE NA UNIT
MENU

Bonecas ou filhos? O fenômeno dos bebês reborn e seus limites emocionais

Fenômeno ganha força entre adultos e levanta questões sociais e culturais sobre vínculos, controle e saúde mental

às 19h45
Keziah Costa- Psicóloga e professora da Universidade Tiradentes
Keziah Costa- Psicóloga e professora da Universidade Tiradentes
Compartilhe:

Bonecas hiper-realistas com aparência de recém-nascidos, chamadas de bebês reborn, têm ocupado espaço crescente na vida de muitas pessoas adultas, não apenas como itens de coleção, mas como objetos de afeto e até mesmo como substitutos simbólicos de vínculos emocionais. Mas a linha entre o simbólico e o real pode se apagar: há casos de pessoas que levam seus reborns a emergências médicas, confundindo profissionais de saúde ao apresentá-los como filhos em sofrimento. 

Embora não existam dados oficiais sobre o número exato de pessoas que possuem essas bonecas hiper-realistas, indicadores apontam para uma demanda crescente. Por exemplo, a loja “Minha Infância” em Belo Horizonte, registra um faturamento médio de R$ 40 mil por mês, com vendas que podem chegar a 200 unidades em datas comemorativas como o Dia das Crianças e o Natal. Os preços das bonecas variam de R$ 500 a R$ 4 mil, dependendo do nível de detalhamento e personalização

Para a psicóloga e professora da Universidade Tiradentes (Unit), Keziah Costa, o fenômeno deve ser compreendido de forma ampla. “O interesse crescente por bebês reborn entre adultos pode ser analisado pela psicologia a partir de diferentes perspectivas, considerando aspectos sociais, culturais, subjetivos e econômicos. Embora ainda existam poucos estudos acadêmicos sobre o tema, esse fenômeno não deve ser visto de forma isolada, mas sim como uma expressão social ligada a marcadores como classe, gênero, idade e raça, reconhecendo o sujeito como um ser histórico e inserido em um contexto social mais amplo”, explica.

A função simbólica e terapêutica 

De acordo com Keziah, cerca de 60% dos consumidores são mulheres adultas, muitas com renda superior à média, o que aponta para uma construção social que ainda associa o feminino ao cuidado, à maternidade e ao acolhimento. “A lógica de mercado, onde o consumo muitas vezes é apresentado como resposta ao sofrimento e à solidão, também alimenta o apelo dessas bonecas. Redes sociais e influenciadores reforçam a ideia de que a presença do reborn é símbolo de afeto e felicidade, tornando-o objeto de desejo emocional”, elenca,

Na visão da psicologia, especialmente sob a ótica do psicanalista Donald Winnicott, o brincar é um elemento estruturante da saúde mental. “Mesmo na vida adulta, o brincar se transforma passa a se expressar na criatividade, na arte, no humor e na imaginação. O bebê reborn pode, em certos contextos, funcionar como um objeto transicional, auxiliando na elaboração de lutos, reorganização emocional e amadurecimento psíquico”, explica Keziah.

O uso terapêutico já é adotado em algumas clínicas e lares de idosos, principalmente no cuidado de pessoas com demência. Nesses contextos, a boneca funciona como um instrumento de conforto simbólico, ajudando a controlar crises de ansiedade e sentimentos de isolamento. “No caso de pessoas idosas, especialmente aquelas que enfrentam processos demenciais, é comum a manifestação de comportamentos infantilizados, nos quais a boneca surge como uma fonte de apoio emocional. O bebê reborn pode, assim, representar uma maneira que algumas pessoas encontram para lidar com perdas, solidão e fragilidade emocional”, ressalta a psicólog.

Apesar de possíveis benefícios, o apego intenso e desproporcional ao bebê reborn pode ser prejudicial. Keziah alerta para os sinais que indicam que o uso deixou de ser simbólico e passou a representar uma fuga da realidade. “Nessa fusão a pessoa apresenta forte resistência para se separar do bebê reborn, pois ao se afastar sente tristeza ou ansiedade. Investimento desproporcional, necessidade de alimentar, dar banho, levar ao médico, etc. Não ver mais necessidade de se relacionar, pois estar com o bebê é o suficiente e dificuldade em reconhecer a natureza simbólica do brinquedo”, alerta.

Relações líquidas e o desejo de controle

A busca por vínculos afetivos sem riscos ou contradições, segundo a psicóloga, está conectada com uma característica marcante da sociedade contemporânea: o desejo de controle. “Cuidar de um bebê humano exige renúncia, escuta, adaptação e frustração. O bebê reborn oferece o oposto: uma relação previsível, sem demandas reais, que pode ser interrompida quando o sujeito quiser. Ele encarna a fantasia da onipotência, de que é possível amar sem esforço e ser amado sem frustração”, analisa Keziah.

Essa tendência se conecta com o conceito de “relações líquidas”, descrito pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em que os vínculos são descartáveis e moldáveis ao prazer individual. No caso dos reborns, a boneca pode ser símbolo dessa busca por afeto idealizado e sob controle total. 

Evitar julgamentos e acolher é fundamental

Em tempos pautados em hiperdiagnósticos, a especialista traz um alerta. “Atualmente, é comum a patologização das pessoas com base em conteúdos de redes sociais, mas é fundamental lembrar que diagnósticos de transtornos mentais só devem ser feitos por profissionais qualificados, como psicólogos e psiquiatras, após uma avaliação criteriosa”, pondera a psicóloga.

A motivação para adquirir um bebê reborn pode ir desde um hobby inofensivo até a tentativa de lidar com perdas profundas. Por isso, familiares e amigos devem observar, mas com empatia. “Se há sinais de isolamento, dependência emocional intensa ou sofrimento psíquico, a recomendação é procurar um psicólogo. Mas o apoio da família nesse processo é fundamental para a reconstrução emocional”, afirma.

Entre a fantasia e a realidade, essa tendência revela muito sobre quem as pessoas são, sobre como lidam com a dor, com o afeto e com o outro. “A escuta atenta, o não julgamento e o suporte profissional são os caminhos mais responsáveis para lidar com essa nova forma de expressão do psiquismo humano que, hiper-realista ou não, revela demandas reais”, conclui Keziah.

Leia também: A arte que vai do lápis ao drone: conheça a carreira de Adauto Machado

Compartilhe: