Embora protegidos pela Constituição Federal e por tratados internacionais, os direitos dos povos indígenas nem sempre se materializam de forma prática no cotidiano. Para a Comunidade Xokó, em Sergipe, acessar o sistema judiciário estadual pode ser um caminho cercado de barreiras, que vão desde o desconhecimento das normas culturais até o receio em dialogar com instituições públicas. Buscando compreender essas lacunas entre a lei e a realidade, o estudante de Direito da Universidade Tiradentes (Unit), Luan Gabriel Sousa de Oliveira, desenvolveu seu pré-projeto de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no âmbito do Programa Laboratório Social.
Intitulado “Acesso à Justiça ordinária na comunidade Xokó, Sergipe: análise a partir dos direitos humanos dos povos indígenas”, o trabalho parte de uma inquietação: por que, mesmo com garantias legais, a justiça ainda parece distante das populações originárias? Segundo Luan, a proposta surgiu do interesse prévio por direitos coletivos, especialmente em disciplinas ligadas aos direitos humanos. Mas foi dentro do Laboratório Social (programa em parceria com as universidades espanholas de Valladolid e Deusto) que ele encontrou um caminho mais concreto para aprofundar essa pauta.
“Meu interesse pelos direitos coletivos, especialmente os dos povos indígenas, surgiu ainda nas disciplinas de Direitos Humanos. No Laboratório Social, ao aprofundar os estudos sobre pluralismo jurídico, percebi na comunidade Xocó um exemplo marcante das contradições entre leis progressistas e práticas sociais excludentes. Isso consolidou ainda mais minha vontade de atuar nessa área”, compartilha.
Acesso à justiça sob a ótica dos direitos humanos
O projeto busca entender de que forma as normas constitucionais (como o artigo 231 da Constituição de 1988) e internacionais (como a Convenção 169 da OIT) estão ou não sendo aplicadas na prática dentro da comunidade. Para isso, ele investiga entraves históricos e contemporâneos, como a invisibilidade dos costumes jurídicos próprios dos Xokó, barreiras linguísticas e desconfiança institucional.
A pesquisa de Luan aposta em uma escuta qualificada e respeitosa das vivências locais como método de análise. Ele planeja uma residência temporária nas aldeias Xokó, onde irá realizar observações participantes, entrevistas semiestruturadas com líderes e membros da comunidade, e manter um diário de campo. “Trazer a voz dos próprios Xokó garante que as soluções recomendadas sejam culturalmente adequadas e efetivas”, defende.
Além do contato direto com os indígenas, Luan também vai consultar documentos como decisões judiciais, relatórios da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e diretrizes do Conselho Nacional de Justiça, como a Resolução 454/2022, que trata da atuação do Judiciário em contextos interculturais. O objetivo é mapear os principais desafios enfrentados e propor caminhos que respeitem a diversidade cultural sem abrir mão da cidadania. “O programa viabilizou o planejamento do trabalho de campo junto aos Xokó, o que intensificou meu interesse em conhecer a comunidade”, afirma o estudante.
Impacto social
Durante a apresentação do seu pré-projeto para a banca avaliadora, Luan recebeu elogios pela relevância do tema e pelo embasamento teórico. Entre as sugestões feitas, destacam-se a inclusão de um comparativo com sistemas jurídicos indígenas da Espanha, o detalhamento do cronograma de pesquisa em campo e uma abordagem mais profunda sobre o chamado “novo constitucionalismo latino-americano”, com exemplos do Equador e da Bolívia.
O TCC, segundo ele, busca mais do que produzir conhecimento: quer gerar impacto. “A mobilidade internacional permite confrontar o arcabouço jurídico brasileiro com outras tradições. No meu caso, com o sistema espanhol. Isso amplia a compreensão sobre pluralismo jurídico e fortalece redes de pesquisa. Dialogar com professores e estudantes estrangeiros dá visibilidade ao tema e pode inspirar políticas públicas mais eficazes”, explica.
Experiência internacional
Em outubro, Luan embarca para a Universidad de Valladolid, na Espanha, onde passará duas semanas em um intercâmbio acadêmico. Ele será hospedado em uma residência estudantil próxima ao campus histórico e participará de seminários, aulas e rodas de diálogo com pesquisadores locais. “Espero conhecer experiências europeias de reconhecimento de sistemas jurídicos tradicionais, aprender métodos avançados de pesquisa qualitativa comparativa e desenvolver uma visão crítica sobre como diferentes Estados lidam com a interculturalidade no Judiciário”, projeta o estudante.
Com o primeiro capítulo do TCC em elaboração e a visita à comunidade já sendo planejada, Luan vive a expectativa de um trabalho que vá além da teoria: que transforme, de forma concreta, a maneira como a justiça é pensada e praticada em contextos indígenas.
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