A luta das mulheres brasileiras pelo controle de sua fertilidade é antiga e marcada por diversas barreiras legais e culturais. No centro dessa batalha está a legislação que impõe restrições à laqueadura, a esterilização feminina. Atualmente, a análise do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre essa lei representa um momento crucial na defesa dos direitos reprodutivos das mulheres, que buscam garantir sua autonomia sobre suas próprias escolhas reprodutivas.
A Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regulamenta a laqueadura no Brasil, estabeleceu que as mulheres devem ter pelo menos 25 anos ou dois filhos vivos para se submeterem ao procedimento, além de um período de reflexão de 60 dias e consentimento informado. Agora, as mulheres poderão realizar laqueadura e os homens vasectomia a partir dos 21 anos. Também, pela nova lei, não será mais necessário o consentimento do cônjuge para que a cirurgia seja realizada. Contudo, a restrição do método continuou condicionado ao número mínimo de dois filhos.
“Antes da lei, havia casos documentados de mulheres sendo submetidas à esterilização sem seu pleno consentimento, muitas vezes por pressão de profissionais de saúde ou em momentos vulneráveis, como durante o parto. Essas práticas levantaram preocupações sobre violações dos direitos reprodutivos e da autonomia das mulheres. Essas medidas tiveram por objetivo garantir que a decisão de se submeter à esterilização fosse voluntária e informada, possibilitando que a mulher pudesse considerar cuidadosamente sua decisão, compreendendo as implicações de longo prazo da esterilização”, explica a advogada e professora do curso de Direito da Universidade Tiradentes (Unit), Kátia Cristina Barreto Ferreira.
No cenário internacional, a legislação brasileira é considerada uma das mais restritivas. Em países como os Estados Unidos e o Canadá, as leis variam por estados e províncias, mas geralmente são menos rígidas e focam mais no consentimento informado e nos períodos de reflexão. Já na Índia, por exemplo, além de restrições etárias e de número de filhos, exige-se a permissão do marido para a realização da esterilização em certas circunstâncias.
Argumentos a favor e contra as restrições
Os defensores das restrições argumentam que elas são necessárias para proteger as mulheres de decisões precipitadas e garantir a saúde pública. Alegam que a laqueadura é um procedimento irreversível que pode ter consequências emocionais negativas para as mulheres, especialmente se jovens ou influenciadas por fatores externos. “Alguns argumentam ainda que a laqueadura permanente é uma intervenção médica significativa e que é apropriado impor certos requisitos legais, como consentimento informado e espera, para garantir que a decisão seja tomada de forma cuidadosa e ponderada, já que existem métodos contraceptivos reversíveis e menos invasivos”, elenca Kátia.
Por outro lado, os argumentos contra as restrições são igualmente fortes. Defensores da liberdade reprodutiva afirmam que as mulheres devem ter o direito de fazer escolhas informadas sobre seu próprio corpo, incluindo a decisão de se submeterem à esterilização. “As restrições à laqueadura colocam uma carga desproporcional sobre as mulheres, limitando sua capacidade de controlar sua própria fertilidade, em comparação com os homens; as restrições podem ainda ter efeitos negativos na saúde mental das mulheres, especialmente daquelas que desejam evitar gestações devido a razões médicas, financeiras ou pessoais, além de dificultar o acesso das mulheres a procedimentos de esterilização seguros, levando-as a recorrer a métodos menos seguros ou ilegais”, pontua a advogada.
Impactos sociais e de saúde pública
As restrições para a laqueadura podem ter várias implicações sociais e de saúde pública, que podem afetar as mulheres, suas famílias e a sociedade como um todo, por exemplo:
- Limitar a autonomia reprodutiva das mulheres: Dificultar o acesso das mulheres à laqueadura como método contraceptivo, restringindo sua liberdade de escolha sobre sua própria fertilidade.
- Aumentar as desigualdades de gênero: Afetar desproporcionalmente mulheres de baixa renda, minorias étnicas e outros grupos marginalizados, que já enfrentam barreiras no acesso à saúde reprodutiva.
- Impactar a saúde mental das mulheres: Gerar estresse, ansiedade e sofrimento emocional para mulheres que desejam se submeter à laqueadura, mas encontram dificuldades por causa das restrições.
- Aumentar o número de gestações não planejadas: Limitar o acesso à laqueadura pode levar a um aumento no número de gestações não planejadas, com consequências negativas para a saúde materno-infantil.
De acordo com Kátia, existem evidências de que as restrições à laqueadura podem afetar desproporcionalmente certos grupos de mulheres, incluindo aquelas de baixa renda, minorias étnicas e outras populações marginalizadas, pois estão suscetíveis a enfrentar barreiras adicionais ao acesso aos serviços de saúde reprodutiva, incluindo a esterilização. Isso pode incluir dificuldades para pagar por procedimentos médicos, transporte para consultas médicas e falta de acesso a serviços de saúde de qualidade em suas comunidades.
“Em alguns casos, mulheres de baixa renda podem enfrentar discriminação ou tratamento inadequado por parte dos prestadores de serviços de saúde, o que pode dificultar ainda mais seu acesso à esterilização e a outros métodos contraceptivos, o que pode afetar sua capacidade de fazer escolhas informadas sobre sua própria fertilidade. Em algumas comunidades, pode haver pressões sociais e culturais que desencorajam as mulheres, especialmente aquelas de grupos minoritários, de buscar a esterilização, como crenças culturais sobre a importância da maternidade ou expectativas de gênero que valorizam a fertilidade feminina”, elenca a advogada.
O papel do STF e os possíveis desdobramentos
O STF tem um papel fundamental ao analisar a constitucionalidade da lei que impõe restrições à laqueadura. A decisão do tribunal deve ponderar os direitos fundamentais das mulheres, como a autonomia reprodutiva e a igualdade de gênero, com outros interesses legítimos, como a proteção da saúde pública.
“O STF pode considerar a constitucionalidade da lei, ao examinar se as restrições impostas pela lei são compatíveis com os princípios constitucionais, e se as restrições discriminam injustamente as mulheres com base em gênero, estado civil, número de filhos ou outras características protegidas pela Constituição, e se as restrições impostas pela lei são proporcionais aos objetivos legítimos que ela busca alcançar, como a prevenção do arrependimento ou a proteção da saúde das mulheres”, reforça Kátia.
Existem iniciativas e movimentos em andamento no Brasil que buscam influenciar a decisão do STF em relação às restrições à laqueadura, a exemplo das organizações de direitos das mulheres que têm feito campanhas e mobilizações para sensibilizar a opinião pública e pressionar o STF a revisar as restrições à laqueadura. Essas organizações destacam a importância da autonomia reprodutiva das mulheres e argumentam que as restrições atuais violam seus direitos fundamentais.
“Organizações de saúde e direitos humanos têm se posicionado contra as restrições à laqueadura, argumentando que elas representam uma violação dos direitos reprodutivos das mulheres e podem ter sérias consequências para sua saúde física e mental. Essas organizações têm feito lobby junto ao STF e apresentado argumentos jurídicos e científicos em defesa da revisão das leis restritivas”, infere.
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