A promulgação da Lei do Marco Temporal em 2023 trouxe consigo uma série de mudanças no cenário dos direitos indígenas no Brasil. A Lei nº 14.701/23 que regulamenta a tese jurídica de mesmo nome, estabelece um novo requisito para a demarcação de terras e está sendo alvo de intensos debates prometendo ser palco de disputas no Supremo Tribunal Federal (STF) ao longo de 2024.
A lei estabelece que os povos indígenas só têm direito à demarcação de terras que estavam em sua posse ou em disputa judicial em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O professor do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes (Unit), Fran Espinoza, traz alguns desdobramentos e esclarece as implicações da legislação e seus desafios.
“Pela norma serão terras indígenas: áreas tradicionalmente ocupadas, áreas reservadas consideradas pela União de outras formas, e áreas adquiridas por meio de operações de venda ou doação. Quando analisamos o marco temporal, minimamente devemos incluir duas variáveis, o primeiro é que a maioria de terras homologadas é o reflexo de décadas de lutas dos povos indígenas, intermináveis processos burocráticos, visitas de técnicos e antropólogos, além de inumeráveis viagens a Brasília para conseguir o reconhecimento”, relata.
A primeira variável refere-se ao histórico de lutas dos povos indígenas para terem suas terras reconhecidas. Espinoza destaca o exemplo da Terra Indígena Kariri-Xoco no estado de Alagoas, onde o processo de luta iniciou em 1940, resultando no reconhecimento de apenas 700 hectares dos 7.000 demandados pelos indígenas. “Nesse sentido, é importante lembrar que o direito à terra está presente na Constituição brasileira de 1988 como uma garantia de territorialidade coletiva, ancestral, tradicional e espiritual dos povos indígenas”, completa.
A segunda variável abordada por Espinoza é a reconstrução da identidade indígena. Com base em pesquisas realizadas no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos através do Projeto Laboratório Social da Universidade Tiradentes e a Universidade de Valladolid em parceria com a Comunidade Xocó, ele destaca que as memórias da luta pela retomada do território, transmitidas oralmente, possibilitaram a reconstrução da identidade coletiva.
Análise da Lei do Marco Temporal
O egresso de Direito da Unit e doutorando em direitos humanos pela Universidad de Deusto, na Espanha, Douglas Diniz, dedicou seu mestrado para pesquisar sobre “Insuficiências do Direito à terra dos povos indígenas no Brasil”. Sua pesquisa busca entender a relação instituída pelo Estado brasileiro perante o direito à terra dos povos indígenas.
Atualmente, no doutorado, ele investiga sobre a ligação entre algumas medidas dos três poderes do Estado brasileiro (executivo, legislativo e judiciário), entre elas o marco temporal, e o seu impacto na execução da obrigação constitucional de demarcar terras indígenas no Brasil. “Analisar o efeito de atos do Estado no andamento dos processos de demarcação de terras pode ajudar a desvendar os impactos de decisões políticas no cumprimento do direito constitucional à terra dos povos indígenas no Brasil”, reforça.
O doutorando oferece uma análise crítica da Lei do Marco Temporal. “A promulgação dessa lei representa um retrocesso para os direitos dos povos indígenas no Brasil tanto em seu caráter simbólico como prático. Simbolicamente, essa lei representa um statement do Congresso Nacional ao reafirmar sua posição contrária aos direitos dos povos indígenas e também uma afronta ao poder judiciário que já havia decidido pela invalidação completa dessa tese”, pontua.
Apesar de ir de encontro à recente decisão da Corte constitucional, Douglas enfatiza que os efeitos práticos dessa lei podem ser muito nocivos, pois poderá impactar nos processos de demarcação de terras indígenas e também incentivar atos de violência contra os povos indígenas como invasões de seus territórios
O especialista ressalta a importância do diálogo e participação direta das comunidades indígenas nas decisões relacionadas ao marco temporal. Além disso, Douglas também destaca o papel ativo dos povos indígenas desde a Assembleia Nacional Constituinte de 1987, garantindo direitos fundamentais em termos de costumes, modos tradicionais, línguas e, especialmente, terras.
“A articulação e mobilização intensa do movimento indígena nacional viabilizou a inclusão desses povos no texto constitucional vigente, garantindo direitos como o direito aos costumes, modos tradicionais, línguas, crenças e mais intensamente às terras que tradicionalmente ocupam. Na atualidade, com a presença indígena no governo e na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), os povos indígenas têm ainda maior capacidade de minimizar os efeitos negativos que possam surgir a partir dessa lei”, infere.
O cenário desenhado pela Lei do Marco Temporal apresenta desafios significativos para os direitos indígenas no Brasil. Entre burocracias históricas e debates jurídicos, as comunidades originárias enfrentam ameaças à demarcação de suas terras e à preservação de suas identidades culturais. O diálogo, a participação ativa das comunidades e a resistência aos retrocessos legislativos emergem como elementos essenciais para enfrentar os desafios impostos pela atual conjuntura. A disputa no STF em 2024 promete ser um capítulo crucial na busca por justiça e reconhecimento dos direitos indígenas no país.
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