Uma reportagem divulgada recentemente mostrou que crianças de Portugal estão falando o mesmo português que se fala no Brasil, o português brasileiro, por influência do YouTuber Luccas Neto. Para linguistas, o fenômeno é novo, mas não incomum, e requer estudos científicos, atenção e acompanhamento afetivo dos infantes.
Segundo a professora da Universidade Tiradentes (Unit) e doutora em Letras, Ana Cláudia Mota, mudanças linguísticas são comuns e acontecem em longos períodos do tempo, diferentemente do fenômeno observado com o falar das crianças portuguesas.
“O fenômeno observado com o YouTuber Luccas Neto é novo, tendo em vista o alcance que a internet passou a exercer no seio familiar. Outrora, essas mudanças se davam através do contato linguístico mantido entre as populações, sobretudo em relação à oralidade. A língua escrita, na sua essência, por seguir normas rígidas preestabelecidas, sempre foi mais resistente às transformações”, esclareceu a professora.
O aprendizado linguístico de uma criança assemelha-se a uma esponja, metaforicamente. Ela tem a capacidade de assimilar, processar e compreender muitas informações ao mesmo tempo. “A partir dos dois meses, isso pode variar para mais ou menos, quando inicia-se o processo de aquisição da linguagem, período em que as crianças passam a reconhecer a voz da mãe, do pai e daquelas pessoas com as quais têm um contato mais próximo, e vai paulatinamente desenvolvendo a linguagem, cuja maturidade se adquire por volta dos 7 anos de idade”, explicou.
“Com a pandemia e o isolamento social, a internet passou a ser o principal meio de interação e acesso à informação, e para as crianças isso se deu de modo muito marcante. O público infantil que está passando por esse processo de assimilação linguística está justamente na faixa etária de aquisição da linguagem. E, por serem expostas a um grande volume de horas assistindo a esses programas, passam a reproduzir o que veem e escutam”, afirmou a doutora em letras.
Ela acredita que a interferência causada pelo YouTuber no idioma português seja momentânea, pois, com o passar do tempo, as crianças serão influenciadas mais fortemente pelo meio em que vivem, tanto na família quanto na escola e, posteriormente, na universidade e nos ambientes de trabalho.
“Tanto na infância como na juventude é natural que os falantes se apropriem do vocabulário daquele grupo no qual está mais imerso. Normalmente, são fases, sobretudo para o indivíduo que tem acesso ao ensino formal, a exemplo da formação universitária, que se aproxima de um modelo linguístico culto. Já o adulto, maduro linguisticamente, naturalmente é mais resistente à assimilação linguística, todavia, esse fenômeno pode ocorrer por demandas e pressões sociais”, considerou.
Origens da língua
As línguas europeias derivadas do latim se consolidaram entre os séculos XII e XVI, durante a Baixa Idade Média e a Idade Moderna. Sob a influência dos idiomas dos povos bárbaros provenientes do norte europeu e a língua latina falada no Império Romano, o português rudimentar surgiu como uma mescla.
“A língua portuguesa é proveniente do latim vulgar, dialeto popular e informal do latim falado por várias camadas da população romana. Através desse processo de diferenciação pelo qual passou o latim vulgar, foram originados, além do português, o francês, o espanhol, o italiano e o romeno”, acrescentou Ana Cláudia.
No entanto, para se configurar como um novo idioma, foram necessárias décadas para que os dialetos falados sofressem interferências suficientes para que se transformassem no que conhecemos hoje como português. “A mudança constante é uma característica marcante do ser humano, e a língua, importante elemento que representa e define um povo, acompanha pari passu [no mesmo passo ou ritmo] essas transformações”, disse.
Comportamento
Para a doutora, o episódio com as crianças portuguesas requer atenção do pais. “O episódio de assimilação linguística em questão deve ser encarado pelas famílias como um ponto de atenção, sobretudo quando se trata de educação e imposição de limites. Todo excesso traz as suas consequências, portanto, dosar o tempo de tela das crianças e estabelecer um maior contato com os filhos, expondo-os a situações do seu cotidiano e ambiente familiar, certamente será salutar e harmônico para pais e filhos”, finalizou a professora.
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