“No dia 14 de maio, eu saí por aí / Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir / Levando a senzala na alma, subi a favela / Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci”. Os versos da música “14 de maio”, dos compositores Jorge Portugal (1956-2020) e Lazzo Matumbi, mostram que a escravidão da população negra no Brasil gerou muitas consequências que se arrastaram para muito além do dia 13 de maio de 1888, quando a Lei Áurea foi decretada pela Princesa Isabel e determinava a abolição da prática no país. Elas se confirmam principalmente em estatísticas que colocam a população negra como maioria entre os de maior vulnerabilidade social e os de menor acesso a direitos básicos como saúde, educação e emprego.
De acordo com os dados da pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada em novembro de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de pessoas pardas abaixo da linha de pobreza é de 38,4%, contra 34,5% da população preta e 18,6% entre pessoas brancas. Mostra ainda que o rendimento médio dos trabalhadores brancos, à época em R$ 3.099,00 é quase o dobro do recebido por pretos (R$ 1.764,00) e pardos (R$ 1.814.00). E que os trabalhadores pretos ou pardos representam 53,8% da população, mas ocupam apenas 29,5% dos cargos gerenciais, contra 69,0% dos brancos.
“As sequelas da escravidão são múltiplas. A título de exemplo, temos que as pessoas em situação de rua, a atual população prisional, e as pessoas analfabetas ou com baixo nível de escolaridade, são majoritariamente negras. A população negra enfrenta as maiores jornadas de trabalho, recebem menores remunerações e estão em trabalhos mais precarizados. Os povos indígenas e os demais povos tradicionais sofrem com a perda de seus territórios, com a falta de acesso à saúde e à educação básica, e ainda com o esvaziamento de sua cultura”, explica a advogada e pesquisadora Wézya Ferreira, egressa do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGD) da Universidade Tiradentes (Unit Sergipe).
Para ela, a música “14 de maio” expressa fielmente o cenário social ao dia seguinte à promulgação da Lei Áurea, no qual as pessoas negras se viram forçadas a existir à margem de uma sociedade que formalizou sua libertação formal, mas não garantiu sua liberdade de fato. Desde então, elas passaram a construir moradias irregulares, como as favelas, sem recursos financeiros para se manter e sem quaisquer direitos básicos. Hoje, em razão da falta de acesso a esses direitos e de suporte material que os garanta, estas populações ainda são as menos representadas nas casas legislativas, ocupando cargos de poder, ou nas empresas privadas, em cargos de gerência e liderança.
Wézya acrescenta que a abolição da escravatura no Brasil, apesar de amplamente reivindicada por movimentos abolicionistas populares que ganharam força ao longo da segunda metade do Século XIX, foi tardia, a ponto de colocar o nosso país como o último a tomar essa medida em todo o Ocidente. “A assinatura da Lei Áurea em 1888 aconteceu principalmente pelas pressões políticas e econômicas internacionais à época, e não com interesse de garantir os direitos daquela população recém-liberta, como exigiam os movimentos abolicionistas. Em razão disso, não houve qualquer comprometimento formal ou material da monarquia com a reparação, a garantia de direitos para aquela população negra que foi considerada como ‘objeto de exploração’, durante o 13 de maio de 1888, tampouco após ele”, lamenta a pesquisadora.
Uma característica negativa
Sobre esse aspecto, o escritor, diplomata e líder abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910) escreveu certa vez que “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Uma previsão que, na visão de Wézya, confirmou-se a partir de uma herança colonial que conta a história contada dos povos negros e indígenas a partir da violência e a desumanização que os afetaram, desconsiderando a importância desses povos para a criação de uma identidade nacional.
“Partindo do pressuposto que a nossa sociedade foi criada sob a pedra angular do racismo, podemos dizer que todas as relações provenientes dessa sociedade foram impactadas por essa pedra. Sendo assim, o racismo influenciou os moldes culturais, sociais, políticos, econômicos, jurídicos, educacionais, e foi a ferramenta que permitiu a escravidão”, diz a egressa do PPGD, que cita também a impoprtância de ler e estudar lideranças negras e indígenas que discutem essa característica de maneira mais aprofundada, como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Aílton Krenak, Beatriz Nascimento, Muniz Sodré e Davi Kopenawa.
A presença do racismo como uma das sequelas mais presentes da escravização se confirma também e episódios recentes de discriminação por motivos raciais e religiosos, com ataques e críticas às religiões de matriz africana (a exemplo da umbanda, do candomblé e do ifá). “As culturas, as crenças, as manifestações populares, a estética de pessoas negras e indígenas é considerada desviante, errada. Isso acontece porque a forma ‘padrão’ de humanização, é somente a que foi inserida pelos colonizadores. Essas atitudes são exemplos claros do quanto o imaginário racista que positivou a escravidão, se manifesta diariamente. E em razão disso, precisa ser combatido também nessa frequência, alerta Wezya.
E como essas formas de “sequelas da escravidão” devem ser enfrentadas e tratadas pela sociedade e pelas autoridades? O primeiro passo, segundo a pesquisadora, é admitir a existência desses problemas, o que também passa pelo chamado racismo estrutural. “A posteriori, esses enfrentamentos precisam ser mobilizados em caráter individual e também coletivo. A positivação de normas jurídicas garantindo direitos fundamentais é um caminho possível, é claro, mas deve estar atrelada também à construção de políticas públicas que efetivem necessariamente esses direitos positivados. Ainda é essencial que nossos juristas enfrentem uma teoria interpretativa que coloque a raça como ponto central de questionamento e formulação de entendimentos e julgados, por exemplo”, conclui ela.
Asscom | Grupo Tiradentes