“Cai a emenda, não nós”. Assim dizia a manchete do editorial publicado em 26 de abril de 1984 pelo jornal Folha de São Paulo, que criticava o resultado de uma sessão realizada pela Câmara dos Deputados, em Brasília. Na madrugada daquele dia, o plenário da Casa rejeitou uma emenda constitucional apresentada pelo então deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), que restabelecia as eleições diretas para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, abolidas da Constituição desde 27 de outubro de 1965, quando o então governo Castello Branco editou o Ato Institucional nº 2 (AI-2).
Dos 479 deputados com mandato daquela época, 298 votaram a favor da emenda, 65 foram contra, três se abstiveram e outros 113 faltaram àquela sessão. A então Constituição de 1967 determinava que uma emenda constitucional, para ser aprovada na Câmara, precisaria ter mais de 320 votos. “A proposta foi rejeitada pela Câmara, deixando assim de ser admitida pelo Senado”, anunciava o então presidente do Congresso Nacional, senador Moacyr Dalla (PDS-ES), sob protestos dos deputados e fortíssimas vaias vindas das galerias da Câmara, ocupadas por milhares de pessoas que em seguida gritaram: “Um, dois três! Quatro, cinco mil! Queremos eleger o presidente do Brasil!”.
O resultado daquela sessão frustrou a expectativa de milhões de brasileiros, que se mobilizaram para reivindicar o direito de escolher livremente o seu chefe de estado. Era a ‘Diretas Já”, campanha organizada por líderes políticos que faziam oposição à ditadura militar, e que contou com a adesão maciça da sociedade civil organizada, a qual já exigia mudanças e mais liberdade política.
“Foi no contexto da transição democrática, da reabertura. O próprio governo militar começa a distensionar, os apoios internacionais a esse governo começam a enfraquecer. Há um movimento operário ascendente e contestando. A oposição consentida do MDB começa a ganhar mais força e é efetuada a campanha da Anistia [concedida em 1979]. Com isso, vários políticos que tinham sido exilados voltam ao país. Tudo isso faz parte de um contexto em que já se percebe o fim, digamos assim, do regime militar”, explica o professor Maurício Gentil Monteiro, do curso de Direito da Universidade Tiradentes (Unit).
Ao longo de um ano, desde a primeira manifestação feita em Recife (PE), no dia 31 de março de 1983, comícios e passeatas arrastaram milhares de pessoas às praças e avenidas das capitais e das grandes cidades brasileiras, com a presença dos mais influentes líderes políticos da oposição na época, como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Leonel Brizola, Franco Montoro, Miguel Arraes, Fernando Henrique Cardoso e o então líder sindical Luís Inácio Lula da Silva, atual presidente do Brasil.
Consequências
Com a rejeição da que passou a ser conhecida como Emenda Dante de Oliveira, a escolha do próximo presidente seria feita pelo Congresso Nacional, em janeiro de 1985. Gentil lembra que, “nesse contexto, houve ainda um esforço da cidadania em ainda que indiretamente, tentar eleger o primeiro civil, desde o golpe militar”, levando à formação da Aliança Democrática que elegeu o ex-senador Tancredo Neves como presidente, por 480 votos a 180.
Ao mesmo tempo, uma grave crise política dividiu o PDS, partido de sustentação ao governo João Baptista Figueiredo. Irritados com a escolha do ex-governador paulista Paulo Maluf como candidato oficial, os dissidentes liderados pelo então vice-presidente Aureliano Chaves romperam com o partido, criaram a Frente Liberal e aderiram à Aliança Democrática. Tancredo não chegou a assumir o governo, pois, na véspera da posse, sofreu um grave problema de saúde e morreu em 21 de abril de 1985. O cargo foi assumido por outro civil: José Sarney.
O movimento das Diretas Já gerou ainda uma segunda consequência que mudou a história política do país. “O acúmulo da mobilização popular em prol das Diretas já serviu para o acúmulo seguinte, que foi a campanha pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Ela veio efetivamente promulgar uma nova Constituição que estabelecesse novamente o regime democrático no país”, diz o professor, referindo-se à atual Constituição, redigida pelos deputados eleitos em 1986 e promulgada em 5 de outubro de 1988. Foi justamente esta Constituição que devolveu as eleições diretas para presidente, realizadas nos dias 15 de novembro (1º turno) e 17 de dezembro de 1989 (2º turno).
De lá para cá, oito eleições presidenciais foram realizadas e dois dos eleitos (Fernando Collor e Dilma Rousseff) sofreram processos de impeachment. Tudo isto com a intensa participação política dos brasileiros, que foi um dos maiores legados deixados pelas Diretas. “Creio que ela nos deixou lições importantes mobilização social, democrática, que posteriormente foi utilizada em diversas outras situações da cidadania brasileira pelas mais variadas reivindicações de uma sociedade plural, complexa, e na qual efetivamente o povo seja titular da soberania, tal como determina a Constituição”, conclui o professor Gentil.
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