Aos 76 anos, ela é a guardiã e principal preservadora de uma tradição folclórica tricentenária, que identifica totalmente a cultura popular de Sergipe e, mais precisamente, da cidade de Laranjeiras, no Vale do Cotinguiba. Trata-se de Maria Nadir dos Santos, que todos conhecem como “Dona Nadir da Mussuca”. Ela nasceu, se criou e viveu sempre ligada à Mussuca, um povoado remanescente das antigas comunidades quilombolas que habitam a região desde o século 16. E foi dali que surgiram duas das expressões culturais mais significativas desta tradição: o samba de pareia e a dança de São Gonçalo.
Nadir veio de uma família de moradores da Mussuca que também já era ligada à tradição local. O pai, José Paulino, era o “patrão” (líder) do grupo de São Gonçalo do povoado. Ela mesmo 10 anos quando começou a acompanhar o pai e os irmãos pelas casas do povoado, percorrendo-as em cortejo e cantando os versos criados em homenagem a São Gonçalo. Com a morte do pai e de outros líderes do povoado, ela assumiu a liderança e a responsabilidade de manter a tradição da dança e de seus cantos. “Foi passando de geração para geração e é um grupo que não tem tempo de acabar. O povo da Mussuca é nascido e criado dentro do samba de pareia e tem que ter nos festejos juninos todos os anos”, disse ela mesma, em entrevista recente.
O próprio samba de pareia é um desdobramento da tradição do São Gonçalo, trazida inicialmente pelos portugueses, mas que se modificou e ganhou raízes profundas na música, nos ritmos e na cultura africana trazida pelos quilombolas. Nela, as músicas são fortemente marcadas pelos ritmos dos tambores, atabaques, cuícas e ganzás. Eles se somam ao barulho dos tamancos usados pelas mulheres vestidas com roupas coloridas de chita, acessórios e chapéus enfeitados, que puxam os versos e dançam em duplas emparelhadas, batendo fortemente os pés no chão, em uma cadência bastante ritmada.
Alguns pesquisadores relatam que os primeiros registros do samba de pareia datam do final do século 19, quando o então imperador Dom Pedro II baixou a Lei do Ventre Livre, que permitiu a libertação de bebês nascidos de gestantes escravizadas. Os sambas eram puxados e cantados para comemorar o nascimento de crianças na comunidade, mas também para retratar histórias e tradições herdadas dos ancestrais, além de coisas e costumes da realidade local. E passou a ser cantado principalmente nas festas juninas.
Dessa forma, a tradição foi se mantendo entre as gerações e passou a ser mais conhecida fora de Laranjeiras a partir de estudos antropológicos (com destaque para os trabalhos de pesquisadoras como Beatriz Gois Dantas e Aglaé Fontes de Alencar) e participações em grandes eventos culturais promovidos em Sergipe a partir da década de 1970, a exemplo do Encontro Cultural de Laranjeiras e do Festival de Artes de São Cristóvão.
Dona Nadir passou a ser o rosto mais conhecido do samba de pareia, seja pela voz forte com a qual conduz as músicas, seja pelo amplo conhecimento que tem de todas as tradições, histórias e culturas presentes na Mussuca. Conhecimento que uniu as mulheres da comunidade e formou o Grupo Samba de Pareia, que já fez muitas apresentações em diversos estados do Brasil. “O Samba de Pareia é de grande importância para minha vida e para a minha comunidade Mussuca, onde nasci e me criei. Ele está no nosso dia a dia, nas celebrações dos nascimentos e nas festas populares. Sou muito grata ao Grupo Samba de Pareia, que me dá a oportunidade de mostrar o meu canto e a minha arte para Sergipe e para o mundo”, afirma ela.
Trabalhos lançados
Esta trajetória está ganhando cada vez mais visibilidade no Brasil e no exterior, através do EP Nadir da Mussuca e o Grupo Samba de Pareia, lançado no último dia 25 de julho pelo selo Aláfia Cultural/YbMusic,em todas as plataformas digitais de música. Ele tem cinco faixas e foi produzido pelo produtor musical Dudu Prudente (sergipano radicado na Bélgica), em parceria com o percussionista Pedrinho Mendonça, com participações especiais das cantoras Patricia Polayne e Jaque Barroso, entre outros cantores e compositores.
A história de Dona Nadir também está documentada no curta-metragem “Nadir”, lançado em 2019 pelo cineasta Fábio Rogério e que já foi exibido em dois festivais internacionais de cinema independente, em Santa Maria da Feira (Portugal) e em Bangalore (Índia). Outros registros em forma de vídeos, áudios e depoimentos estão reunidos em um site dedicado a ela dentro do portal Acervo da Cultura Afro-Brasileira, mantido pelo Ministério da Cultura (MinC) em parceria com as universidades federais de Goiás (UFG) e Pernambuco (UFPE).
com informações de Secult/SE, Aláfia Cultural e F5 News
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