O ritmo acelerado imposto na atual rotina diária das pessoas, seja pelas novas tecnologias ou pelas formas de relações interpessoais, fez surgir uma série de apelos por “um pouco mais de calma”, “de alma” e “de paciência” para enfrentar um mundo que “vai girando cada vez mais veloz”, como afirma a música “Paciência”, de Lenine e Dudu Falcão. Essa espécie de “pisada de freio” vem sendo sugerida por iniciativas como o “Movimento Slow”, capitaneado e propagado por profissionais e entidades que lidam com a saúde mental em todo o mundo.
No entanto, ao contrário do que muitas pessoas pensam (ou podem pensar), este movimento não deve ser compreendido como algo que se remeta a uma vida lenta, devagar, preguiçosa e cheia de morosidade ou procrastinação. “Se levarmos em conta o significado da palavra slow [‘lento’, em inglês], talvez a interpretamos assim. Porém, a proposta do movimento é justamente um convite para uma tomada de consciência do ‘aqui, agora’ do momento vivido e da qualidade temporal e emocional inseridas neste processo. O Movimento Slow pode ser considerado uma ‘filosofia de vida’, que tem como propósito uma desaceleração da vida”, esclarece a professora Jacqueline Alves Caldeira, do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes (Unit).
O Movimento Slow surgiu como um desdobramento do Slow Food, movimento gastronômico que foi criado na Itália em 1986, como forma de reivindicar uma alimentação mais saudável, acessível e sustentável para todos, desde a produção dos alimentos até a forma como os consumimos. Aos poucos, este modo de vida foi se expandindo para todas as outras áreas de sustentação da existência humana.
Jacqueline explica que isso aconteceu porque a sociedade começou a perceber o movimento volátil e acelerado que sufoca o cotidiano. “Podemos colocar como exemplo a medicina, que traz uma estatística nacional e mundial de adoecimento mental sofrida pelos médicos e todos os outros profissionais da saúde. O burnout, a depressão, o TAG [Transtorno de Ansiedade Generalizada] e até mesmo o suicidio têm conexão com um mundo acelerado, cheio de pressão, stress, isolamento etc. Isso tudo se intensificou na pandemia [de Covid-19] e reverbera até hoje nos consultórios de psicologia e psiquiatria”, contextualiza ela.
Essa sensação de sufoco causado pode ser ilustrada por uma cena do filme São Paulo Sociedade Anônima, de Luís Sérgio Person (1936-1976). Nela, o personagem Carlos, gerente de uma fábrica de automóveis, caminha atordoado pelo centro de São Paulo e desabafa com insatisfação sobre a sua rotina e seus problemas pessoais: “Recomeçar! Trabalhar! Mil vezes tentar ser um homem. Trabalhar com Arturo. Esquecer Ana. Apagar Luciana. Não lembrar-se senão do trabalho, das cinquenta obrigações diárias. Lembrar-se somente das mil chateações diárias do trabalho. Lembrar-se de uma engrenagem, e mais outra, e mais outra e mais outra! De uma engrenagem e depois do eixo que deve ser entregue dentro do prazo estabelecido. Mil vezes recomeçar… Recomeçar de novo, recomeçar sempre. Lembrar-se das cinquenta obrigações diárias do trabalho. Recomeçar! Aceitar! Aceitar!”, diz Carlos, interpretado por Walmor Chagas (1930-2013).
Mudanças cotidianas
Na prática, o que a filosofia de vida do chamado “modo slow” propõe é uma constante e abrangente mudança de práticas e comportamentos cotidianos, que procurem diminuir o estresse e melhorar a qualidade de vida. Segundo a professora, ele pode estar presente em tudo que fizermos. “Desde que você esteja disposto a ter consciência e atenção plena (“mindfulness”). Priorizar a qualidade em vez da velocidade; Resgatar o tempo para descanso (sem culpa) reflexão, conexão humana e muitas leituras leves e construtivas; ter um consumo consciente – rejeitar excessos. Viver de uma forma mais alinhada com a natureza humana e ter uma conexão com a espiritualidade que acredita, também faz parte”, orienta.
Na moda, o slow fashion busca uma consciência da desaceleração da moda e propõe a moda sustentável, reciclada e reaproveitada, o que reverberou no crescimento dos brechós e dos bazares. Na educação infantil, o slow kids se propõe a educar as crianças em seu tempo, sem envolvê-las na correria cotidiana dos pais. No mundo corporativo, as grandes empresas vêm investindo em ambientes mais abertos, cantinhos destinados aos animais de estimação, locais para amamentação e a promoção de espaços que favorecem a prática de habilidades de comunicação entre os colegas. Na psicologia, os profissionais buscam divulgar e ampliar o conhecimento sobre o movimento, gerando novas possibilidades e novas formas de flexibilizar o rigor das obrigações diárias. E muita gente começou a praticar esportes, viajar por lugares novos e fazer trilhas em parques, praias e florestas.
Para Jacqueline, o slow é um movimento “genuinamente contra-cultural pela desaceleração da vida”, cuja essência traz em si a proposta de que cada pessoa olhe outra vez, mas de um modo diferente, para as coisas que já são rotinas no seu cotidiano. “E quando olhamos ‘outra vez’ temos a oportunidade de frear o nosso ritmo e desacelerar, melhorar a qualidade de vida, promover conexões mais profundas com as pessoas, o trabalho, o ambiente e o próprio corpo”, diz ela, acrescentando que “aprender a flexibilizar e ter um novo olhar para o que você faz no automático te leva para um movimento slow”.
Esta mudança de comportamentos também traz impactos na inteligência emocional de cada pessoa que se dispõe a aderir a este modo de vida. “O movimento Slow tem uma conexão com a inteligência emocional que poucos compreendem . Ter inteligência emocional é estar atento às suas emoções e saber nomeá-las. É ter autocontrole das suas emoções, desejos e necessidade; ser empático; ter destreza social; aceitar as diversidades e principalmente ter consciência disso tudo. O movimento slow na minha percepção é um combo de tudo que precisamos para viver com mais saúde mental e física, reverenciando e respeitando a nossa condição humana”, conclui a professora.
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