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Como as novas tecnologias digitais estão moldando o “novo brincar” das crianças

Pesquisas científicas mostram que o uso excessivo de celulares e aparelhos eletrônicos está diminuindo a criatividade e a disposição para brincadeiras, além de impactar a saúde mental e corporal

às 20h15
A preferência das crianças por redes sociais e aplicativos de celular vem tomando o espaço dedicado anteriormente aos jogos e brincadeiras de rua ou com com acessórios físicos (Rovena Rosa/Agência Brasil)
A preferência das crianças por redes sociais e aplicativos de celular vem tomando o espaço dedicado anteriormente aos jogos e brincadeiras de rua ou com com acessórios físicos (Rovena Rosa/Agência Brasil)
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A evolução das gerações e das tecnologias traz consigo o surgimento de novas culturas e novos comportamentos. É o que vem sendo percebido principalmente em relação às crianças. Antes da virada do milênio, era mais comum que meninos e meninas passassem os dias brincando na rua, em meio a jogos de futebol, vôlei, “queimada”, bola-de-gude ou mesmo o “pique-esconde” e o “pega-pega”, entre outras brincadeiras que exigem uma boa dose de energia e esforço físico. Com o advento dos celulares, smartphones e outras tecnologias, as ruas foram trocadas pelas telas, fazendo com que as atuais gerações de crianças e adolescentes troquem cada vez mais as ruas pelos mundos virtuais do celular ou do computador. 

Um estudo recente divulgado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), ligada à Universidade de São Paulo (USP), apontou o forte impacto das plataformas digitais em crianças em idade escolar, que têm escolhido consumir conteúdos de redes sociais como YouTube, TikTok e WhastApp, em detrimento de atividades e jogos lúdicos. Na pesquisa, 14 crianças entre 8 e 12 anos foram investigadas em seus hábitos de recreação e consumo digital. Elas relataram dificuldades em brincar sozinhas e em interagir com outras pessoas no ambiente físico, além de estarem mais expostas a situações como cyberbullying, assédio e pressões psicológicas dos mais variados tipos. 

“A criança acaba achando muito mais atraente as cores, o vídeo, a tecnologia que é trazida pelos elementos que a gente tem aqui. Então, o ato de brincar vem sendo moldado por essa prática, justamente por conta desses elementos que a gente tem de trazer, com uma grande quantidade de coisas, de situações que fazem com que a criança esteja sempre ligada. Sem contar o fato de elas ficarem cada vez mais perigosas. As crianças vem perdendo o espaço do brincar coletivamente e a habilidade social, ou seja, a socialização, que é um ato aprendido, enquanto vem perdendo esse espaço”, afirma a psicóloga Catiele Reis, professora do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes (Unit) e especializada em Psicologia da Infância. 

A professora aponta três fatores principais que podem explicar o uso excessivo de telas e tecnologias pelas crianças. “Primeiro a pandemia, que trouxe uma grande quantidade de situações para elas ficarem com o uso acessível do celular. O segundo é a terceirização do cuidado que os pais têm que trabalhar, e as crianças muitas vezes acabam ficando muito tempo no celular para suprir uma falta. E talvez o terceiro motivo seja a demanda excessiva de vários lugares querendo trazer a tecnologia, a exemplo das escolas, entre outros lugares. Estar fora da tecnologia muitas vezes é deixar a criança de lado, e daí surge todo um mercado tecnológico por conta disso”, contextualiza Catiele. 

Uma das consequências disso, e que está apontada no mesmo estudo da FMRP/USP, é a “diminuição da criatividade para desenvolver brincadeiras individuais na vida real”. Catiele atribui esse fato a uma “necessidade mercadológica” cada vez mais presente, com os pais querendo manter seus filhos cada vez mais ocupados o tempo inteiro. “Perde-se a criatividade porque dão tudo de mão beijada pra essa criança, no sentido de não permitir que ela fique entediada. Ela sempre tem que estar fazendo alguma coisa e perde o espaço de criar essa ‘alguma coisa’ que ela vai fazer. Um brinquedo, quando é dado para a criança, já vem com a instrução específica de como ele deve ser usado. Esquece-se que, muitas vezes, que esse brinquedo que eu vou colocar pra essa criança, é algo que eu vou deixar ela descobrir. Tem-se um excesso de falta de paciência nessa questão, que também vem de uma geração de pais tecnológicos”, observa a professora.

Saúde afetada

Outro grande risco corrido pelas crianças e adolescentes que abusam do uso de telas é o impacto na saúde mental e corporal. Uma segunda pesquisa, divulgada em novembro de 2023 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com base na revisão de 142 artigos científicos, mostrou que 72% dos estudos relacionados ao público infantil constataram aumento da depressão associada ao abuso da exposição a telas neste grupo. E apontaram ainda a ocorrência de problemas como transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e diminuição do quociente de inteligência (QI). 

Os resultados corroboram com o que já vinha sendo alertado por especialistas em saúde infantil, sobre para o desenvolvimento do distúrbio de uso abusivo de tecnologias, já tipificado pela Classificação Internacional de Doenças (CID). “A recomendação é que essas crianças possam utilizar de duas a quatro horas por dia no máximo de tecnologias, mas isso está aumentando muito. A consequência disso é uma maior irritabilidade, menor tolerância e frustração, dificuldade de socialização, entre outras coisas. E isso atrapalha muito a rotina porque o celular acaba ocupando muito tempo da pessoa, que deixa de lado outras atividades, principalmente as de convivência”, alerta Catiele, acrescentando a esta lista o desenvolvimento precoce de doenças crônicas associadas à obesidade. 

Como prevenir?

Uma das políticas públicas criadas no sentido de combater o uso excessivo de telas é a lei federal que proíbe o uso de celulares nas escolas públicas e privadas do país, limitando o uso dos aparelhos aos casos de saúde ou emergências. A nova regra, aprovada pelo Congresso Nacional, foi sancionada nesta segunda-feira, 13, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e entra em vigor já no início deste ano letivo, em fevereiro. 

Esta medida, no entanto, é vista com ressalvas. Para a professora Catiele Reis, a proibição dos celulares seria um caminho se as escolas não usassem a tecnologia como ferramenta de ensino. “A criança passa um grande tempo sem uso, mas as próprias escolas têm aplicativos, têm aulas com tablet e outras ferramentas que exigem o uso de tecnologias. Então, será que está sendo um caminho ou está mascarando o problema?”, questiona ela, que sugere um trabalho mais intenso de conscientização dos pais das crianças para que eles dosem mais o consumo dos aparelhos e controlem o acesso a plataformas e aplicativos. 

“É controlar o tempo que a criança fica de acesso ao celular, limitando em até duas horas, é ficar de olho no que a criança está mexendo no telefone, naquilo que ela está trazendo, no que ela está vendo, com quem ela está falando, etc. E prestar atenção na classificação indicativa destes sites e aplicativos”, conclui ela. 

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